Sobre Epidemias, Pandemias e Literatura
por Ricardo Herdy
E agora foi reconhecida a presença da Morte Vermelha. Ela veio como um ladrão da noite.
E, um por um, largou os foliões nos salões cobertos de sangue, cada um morrendo
na postura desesperadora de sua queda. E a vida do relógio de ébano terminou
com a do último dos foliões. E as chamas dos tripés expiraram.
E a Escuridão, a Decadência e a Morte Vermelha tinham alcançado o domínio ilimitado sobre tudo.
“A Máscara da Morte Rubra”, Edgar Allan Poe
O que mais temos ouvido ultimamente é que 2020 está sendo um ano atípico. Também, não é toda hora que um vírus mortal se espalha com velocidade de dobra espacial, espalhando medo e terror por todos os cantos do planeta. Ninguém em sã consciência pode afirmar que estava esperando por um cenário apocalíptico como esse.
Ninguém? Opa, talvez não seja bem assim. A literatura, mais especificamente por meio do gênero amado por todos os membros do CLFC e leitores da SOMNIUM, a Ficção Científica, já prevê cenários como esse há tempos. Temos exemplos tão antigos como “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe (autor de Robinso Crusoe), lançado em 1722. Misto de ficção e jornalismo, o autor descreve o cenário de horror causado pela epidemia de peste bubônica que vitimou quase 100 mil pessoas na Inglaterra no ano de 1665.
Numa linha mais ficcional, em 1947 o vencedor do Nobel de Literatura Albert Camus publica seu livro chamado “A Peste”. Conta a história das mudanças ocorridas na cidade de Orã, na Argélia, depois de passar por uma quarentena em função de uma praga transmitida por ratos que atingiu a população. A história é narrada por um médico, Bernard Rieux, envolvido nos esforços para enfrentar a situação. Um retrato de como as angústias individuais causadas pela epidemia podem levar as pessoas à loucura. Mas sentimentos bons também acabam florescendo, como a solidariedade e a compaixão.
Encontramos uma situação semelhante em “O Enigma de Andrômeda”, de Michael Crichton, lançado em 1969. O livro conta a história de uma bactéria que se espalha na população de uma pequena cidade no deserto do Arizona depois da queda de um satélite nas proximidades. O fato desencadeia reações que incluem um protocolo de emergência comandado pelos quatro maiores cientistas do país.
Em 1978, Stephen King também se junta ao tema com seu “A Dança da Morte”. A história gira em torno da liberação equivocada, pelo Departamento de Defesa, de um vírus mortal – que extermina 99% da população, criando um cenário árido, macabro, sem regras.
O tema parece atrair vencedores do Nobel de Literatura: mais dois autores laureados aderem ao tema. Gabriel García Márquez apresenta “O Amor nos Tempos do Cólera”, que narra uma história de amor proibido durante uma grave epidemia de cólera que assolava a Colômbia. E em 1995, José Saramago se junta ao grupo com seu “Ensaio sobre a Cegueira”, também um caso de uma doença desconhecida que causa cegueira e que se alastra rapidamente, contaminando praticamente toda a população – à exceção de uma única mulher, que testemunha os horrores de pessoas reduzidas ao estado primitivo humano.
Deixei para citar por último o livro “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, de 1940; apesar de não lidar especificamente com o tema das epidemias, a história mostra, de maneira profunda, as angústias causadas pelo isolamento, pela vida congelada num eterno estado de expectativa frustrada.
Todos esses exemplos servem para mostrar a importância da literatura, e, em particular, da ficção científica. Eles nos preparam, em alguma medida, para enfrentarmos a atual situação. E as medidas de isolamento e quarentena nos empurram de volta à literatura, à pilha de livros não lidos que aguardam pacientemente em alguma prateleira das casas de cada um de nós. Voltemos às leituras, pois. Sem elas, enfrentar tudo isso seria muito mais difícil.