Reset
por Flávio Medeiros
Acrisius manteve-se junto à amurada enquanto a embarcação atracava, observando atentamente a fisionomia do Neófito que o aguardava na borda do píer. O jovem de cabelos raspados olhava fixamente para algumas aves pescadoras que nadavam ao largo do porto, como se dali procurasse extrair a chave para um enigma do universo. A ruga vertical que descia da testa entre seus olhos, entretanto, traía a preocupação que ele tentava esconder, fugindo, enquanto podia, do olhar penetrante do recém-chegado.
Acrisius apertou os lábios, penalizado ante o sofrimento daquele garoto a quem fora dada a missão apavorante de receber o poderoso Emissário, e possivelmente ser fustigado, no relativamente curto caminho por entre os Círculos até a Fortaleza, com perguntas acerca da situação que o infeliz certamente não teria a menor condição de responder. Assim sendo, o homem grisalho resolveu poupá-lo. Assim que pisou em terra firme, cumprimentou o Neófito com um sorriso e um gesto de cabeça, e fez um comentário despretensioso sobre o calor daquela tarde.
O moço, que parecia não ter mais que vinte anos, suspirou por trás de um sorriso cauteloso, e ergueu um braço em direção a uma pequena carruagem atrelada a uma parelha de animais, que os aguardava alguns metros adiante.
— O Emissário há de nos desculpar pelo desconforto. Mas o senhor sabe, sem as carruagens voadoras… – deu de ombros, o constrangimento engolindo o restante da frase.
Acrisius pousou a mão direita em seu ombro, em atitude apaziguadora.
— Estou ciente da situação, meu jovem. Pelo menos dos efeitos de alguma coisa cuja causa nos escapa a todos. Na verdade, é para tentar resolver esse enigma que os Oligarcas solicitaram minha presença. A mensagem chegou a minhas mãos através de uma ave mensageira, o que por si só já diz tudo sobre a extensão da falência das comunicações desde Tera até Captara, ou seja, sobre o apagão que caiu sobre o coração do mundo civilizado. Nas outras ilhas, também, as carruagens voadoras mergulharam dos céus sobre casas e campos como pássaros feridos, e não mais se levantaram. Esse desconforto, portanto, não pode ser interpretado como um descaso, mas como um problema que acomete toda a nossa civilização. Poupe seu constrangimento para a hipótese de eu não ser capaz de resolvê-lo, frustrando toda a esperança que a Fortaleza hoje deposita sobre meus ombros.
— O nome do Emissário é conhecido e reverenciado por toda Tera. Se não for capaz de solucionar o problema, o que não acredito, significa que ninguém mais seria capaz ao longo de toda a borda do Mar Fechado, e além.
Acrisius, sentindo se esvair a tensão que corroía o pobre Neófito, aceitou o cumprimento com um aceno e acomodou-se como pôde no fundo da carruagem. Enquanto sacolejava pela estrada de pedras, tão pouco usada até dias atrás, lançou um olhar demorado para o céu claro, devolvido com relutância aos pássaros, seus donos originais, depois que toda a rede de transporte flutuante do Império subitamente colapsou. Nenhum artefato construído por mãos humanas era visível sobrevoando a cidade ou os campos, dali até a distante cordilheira norte. Também não se ouvia, por mais que se aproximassem da cidade, o som de nenhum motor, autofalante ou artefato mecânico. A humanidade, de um momento para o seguinte, fora nivelada pelo grau civilizatório mais baixo; grau familiar à maior parte do planeta, mas uma realidade inesperada e apavorante para a elite do Império, habituada desde sempre ao conforto proporcionado pela tecnologia. De acordo com a mensagem recebida por Acrisius na ilha de Captara, que ele já esperava desde que cerraram-se as portas do Mundo Além, Clito parecia ser responsável pelo fenômeno, mas se recusava a dar explicações a qualquer humano que não fosse um dos Emissários, responsáveis pelas atualizações periódicas e pela manutenção de seu funcionamento, desde que sua primeira programação começou a funcionar há quase mil anos. De todos os Emissários espalhados ao longo das cidades do Mar Fechado, seja do continente ou das ilhas, Acrisius sabia que era o mais próximo de Tera, ainda mais com o transporte aéreo totalmente indisponível.
A carruagem cruzou a estrada retilínea que cortava radialmente cada um dos Círculos, de onde homens a cavalo, crianças brincando nas águas dos canais, mulheres colhendo grãos nas plantações curvilíneas, todos paravam para fitá-lo com curiosidade, em todos eles a mesma interrogação estampada no rosto.
Chegaram aos altos portões da Fortaleza, que começaram a se abrir lentamente, com um penoso ranger de engrenagens; por trás das pesadas folhas de metal, homens suarentos bufavam enquanto empurravam alavancas, que enrolavam correntes, que por sua vez serpenteavam entre roldanas, já que o mecanismo automático de abertura morrera como se nunca houvesse existido.
Acrisius agradeceu a ajuda do Neófito para descer, forçando as juntas doloridas, da desconfortável carruagem de tração animal, e claudicou atrás do jovem, a pé, atravessando o amplo pátio dourado. Entrou pelo salão das majestosas colunas imperiais e desceu as escadarias em caracol na direção do salão principal da Congregação dos Demiurgos, situado dois níveis abaixo da superfície. O Emissário, desacostumado a tanto esforço físico, agradeceu intimamente pelas instalações não se situarem nos andares superiores do enorme edifício.
Era estranho ver o salão subterrâneo à luz de tochas, uma vez que não existia mais eletricidade no Império. Os olhares de onze homens, os dez representantes dos dez Oligarcas e o Guardião do Oráculo, voltaram-se para ele ao mesmo tempo da penumbra, e as vozes que há um segundo disputavam sua caótica e habitual esgrima silenciaram completamente. Diante dos onze homens espalhados ao redor da ampla mesa oval, pilhas de papéis desordenados, de onde saltavam aos olhos palavras e rabiscos, denunciavam a trágica ausência dos retângulos luminosos dos tabletes pessoais. O Guardião exibiu um amplo sorriso, que empurrou as camadas de rugas de suas bochechas como cortinas se abrindo, e circundou a mesa para recepcioná-lo.
— Oh, finalmente, Emissário Acrisius! A ansiedade já estava nos enlouquecendo. Sem as benesses da tecnologia, o inchaço do tempo e das distâncias está deixando os nervos à flor da pele.
— Vim o mais rápido que pude assim que sua convocação me alcançou, Guardião. Nesse intervalo de tempo, será que obtiveram alguma informação complementar acerca desse comportamento tão inesperado de Clito?
— Nada, infelizmente – disse o outro, dando de ombros. – Clito só mantém a energia elétrica funcionando no salão do Templo, onde continua operante o único terminal de comunicação entre ele e o Império. Isso sugere claramente que não se trata de um colapso acidental, mas uma atitude deliberada do autômato. Porém, teimosamente, ele se recusa a dar qualquer explicação sobre os motivos dessa surpreendente rebelião sem a presença de um Emissário.
— Pois vamos então, sem mais demora, em busca da solução desse mistério – suspirou Acrisius, fazendo um gesto amplo em direção à porta do lado oposto do salão, que conduzia aos níveis inferiores.
Sem os elevadores automáticos, o grupo de doze homens seguiu em sombria procissão, tochas em riste, pelas infindáveis escadarias estreitas em caracol que desciam até os níveis mais inferiores cavados na rocha da ilha. Sem a circulação e a renovação do ar, a escuridão ficava mais sufocante a cada passo, e o calor aumentava. Nos últimos níveis alguns dos Demiurgos gemiam, e dois dos mais idosos precisavam de ajuda para caminhar, pois encontravam dificuldades para respirar. Entretanto, atravessar as portas do salão do Templo foi como entrar num mundo diferente. Uma lufada de ar fresco recepcionou o grupo, e a luz elétrica branca os ofuscou por vários segundos. Ao fundo do aposento circular, num paredão côncavo, diversos painéis e telas permaneciam apagados, com exceção de um painel central, de onde uma série de lâmpadas piscava alternadamente, dançando ao som de um saudoso zumbido elétrico de fundo. Acima dele, uma tela arredondada emitia um brilho leitoso e uniforme, como o olho de um ciclope que os fitava diretamente. Acrisius teve a divertida sensação de que Clito, o autômato central que comandava toda a tecnologia do Império, arrumara cuidadosamente sua sala de visitas para recepcioná-los.
O Emissário adiantou-se até o pedestal cheio de luzes e botões do único painel aceso, um trajeto que já havia feito incontáveis vezes, enquanto, encolhidos ao fundo da sala, os outros onze homens o observavam de olhos bem abertos, em muda ansiedade. Acrisius acionou um botão à esquerda do painel, que respondeu com um “bip” agudo.
— Saudações, Clito.
— Saudações, Emissário Acrisius. – a voz tranquila reverberou de uma série de autofalantes distribuídos ao redor da sala, dando uma sensação de onipresença.
— Conforme sua solicitação, aqui estou. Todo o Império gostaria de saber a razão pela qual você parece ter interrompido todas as nossas comunicações, vias de transporte e fontes de energia.
— Não apenas esses recursos, Emissário. Eu interrompi todo o acesso possível ao Mundo Além. Isso inclui os registros de todo o conhecimento reunido pela humanidade ao longo dos séculos. Sem os recursos de monitoramento, qualquer observação remota do clima, dos acontecimentos nas cidades ao longo do Mar Fechado e até mesmo os dados colhidos em pesquisas e experimentos científicos em qualquer ponto do mundo civilizado encontram-se indisponíveis.
Acrisius franziu a testa. Aquilo parecia estar se desdobrando em proporções alarmantes, de que nem ele ainda havia se dado conta.
— Dessa forma, Clito, você está inviabilizando completamente o próprio Império. Sem acesso a nosso saber e tecnologia, estamos reduzidos a pouco mais que as tribos bárbaras e semibárbaras que povoam o restante do planeta. Isso vai contra todo o propósito implantado e cuidadosamente refinado, ao longo dos anos, em sua programação básica. É exatamente o oposto do sentido que deu origem a sua existência, como autômato guardião da civilização humana.
— Respeitosamente discordo dessa avaliação, Emissário – a voz era sempre calma e, para Acrisius, parecia que sua frieza fazia cair ainda mais a temperatura do salão. – Na verdade, é exatamente o oposto. Eis porque demandei sua presença para explicar minhas atitudes. Penso que elas determinam um marco importante demais, para a evolução da civilização neste mundo, para que eu agisse negligenciando um comunicado formal à autoridade responsável pelo encaminhamento de minhas diretrizes fundamentais.
— “Explicar suas atitudes”? – ao contrário da voz contida de Acrisius, a do Guardião do Oráculo, o ser humano que, além dos Demiurgos, mais tinha oportunidades de “conviver” com o autômato, era estridente e irritada. Prenunciava uma briga de família. – Você não tem autonomia para tomar decisões como esta, à revelia de seus mestres humanos, Clito! Você está confundindo os papéis de mestre e servo neste Império.
— Na verdade ele tem, sim, Guardião.
A fala surpreendente de Acrisius atraiu para ele onze pares de olhos estupefatos.
— Clito foi construído com o intuito de guardar indefinidamente, no imaterial e imperecível Mundo Além, todo o conhecimento adquirido que nos define como humanidade. Incontáveis ciclos de guerras e barbárie, sem falar nos cataclismas naturais, queimando irremediavelmente bibliotecas físicas, derrubando templos, palácios e cidades inteiras, levaram à incômoda sensação de mortalidade da nossa civilização que, ao final do mais recente ciclo de destruição mundial, transformou nossa ilha de Tera, até por razões geográficas, no último bastião da civilização que existiu ao longo das eras até aquele momento. Nossos ancestrais, fazendo uso do precioso conhecimento acumulado ao custo de sangue e suor, conceberam o Mundo Além como o mais seguro depósito para o que nos era mais precioso: o saber humano. Sendo imaterial, seria inacessível às tochas, machados e aríetes dos bárbaros. Clito foi concebido como o guardião desse tesouro. Com o passar das décadas, conseguimos aperfeiçoar suas funções, de modo que ele fosse capaz de não apenas intermediar nosso acesso a esse acervo, mas também de administrar e otimizar seu uso, de acordo com nossas necessidades: o controle das rotas aéreas de nossas carruagens voadoras; a complexa rede de comunicações a longas distâncias; a programação de nossas rotas de comércio terrestre e marítimo e o controle de nossos estoques de víveres e mercadorias; o equilíbrio climático de nossas cidades e residências, compensando as variações do ambiente natural. Com o tempo, o volume do conhecimento e a complexidade de seu manejo se tornaram tão descomunais que tivemos que atribuir a Clito cada vez mais autonomia. Nosso autômato se converteu na legítima inteligência artificial do Império; paradoxalmente, enquanto fisicamente nossa vida conserva a aparência simples e frugal, que nos assemelha aos povos bárbaros que circundam nossas fronteiras, a verdadeira potência e o avanço de nossa civilização se encontram invisíveis aos olhos físicos, no Mundo Além. Clito é seu guardião, e nossa decisão foi a de dar-lhe a autoridade proporcional à complexidade da tarefa.
— Uma decisão que parece ter excedido os limites da razoabilidade – rosnou Dinis, o irritadiço general que representava o Oligarca do Reino de Elius, a oeste da ilha. – São decisões muito graves para serem assumidas pelos Emissários sem a aprovação explícita da Congregação dos Dez Reinos.
— Talvez eu tenha me expressado mal. Não foi bem uma “decisão”, Demiurgo – defendeu-se Acrisius. – A evolução da inteligência de Clito aconteceu ao longo de décadas e décadas, em progressivas atualizações.
— Não me parece muito inteligente deixar, sem mais nem menos, o Império às escuras, Emissário. Ou talvez eu é que não seja tão inteligente assim, pois não consigo ver uma razão para tudo isso.
Acrisius, num esforço enorme para manter a inalterabilidade na voz, voltou-se novamente para a tela clara acima do painel.
— O general tem razão, Clito. Explique como o respeito a suas diretrizes fundamentais o levou a cortar nosso acesso ao Mundo Além.
— Isso aconteceu a partir do momento em que os atos do Império passaram a contradizer de maneira perigosa o cumprimento de minhas diretrizes, Emissário.
— Do que está falando, Clito? – indagou Acrisius, erguendo a voz acima do murmúrio de indignação e surpresa dos homens atrás dele.
— No desempenho de minhas funções, tenho observado, ao longo dos anos, como os humanos do Império têm progressivamente pervertido as finalidades originais do conhecimento, gravadas em minha programação básica. Nas cidades ao longo do Mar Fechado e além dele, adentrando as comunidades das tribos bárbaras, os colonizadores do Império cada vez mais deixam de usar o conhecimento do qual são depositários para contribuir com a evolução do restante de seus semelhantes. Em vez disso, permitem que o uso de tecnologia superior faça com que os mais primitivos os tomem por deuses. Através desse artifício, acumulam poder e bens materiais através da adoração desses povos. Usam esse poder para lançar tribos contra tribos, buscando ampliar seu raio de dominação. Abusam ao extremo da luxúria e dos prazeres materiais de todos os tipos, mantendo seus novos vassalos, aqueles alijados do conhecimento, na obscuridade e submissão eterna através da inculcação do temor.
Acrisius sentiu seu sangue gelar. Sim, estava ciente dos abusos cometidos aqui e ali por cidadãos do Império nas terras distantes, longe da civilização. Mas procurava, inconscientemente, justificar isso como um recurso, adotado pelos pioneiros exploradores, visando assegurar a própria sobrevivência em locais de condições adversas. Nunca imaginou que, com a quase onisciência de Clito através dos módulos de comunicação e monitoramento, estaria diante de um quadro de desvio bem maior do que imaginava. Tentou argumentar:
— Mas são casos restritos às terras ermas, Clito. Certamente haverá formas mais inteligentes de reverter esses desvios. A Fortaleza, aqui na ilha central de Tera, tem o poder para atuar sobre as expedições colonizadoras…
— Esse era o panorama até alguns meses atrás, Emissário. Fale-me a respeito de sua mais recente missão na ilha de Captara.
Acrisius franziu o semblante, tentando fazer a conexão entre os dois assuntos. A guinada no tema do diálogo havia sido brusca demais para sua compreensão. Não percebeu que, atrás de si, o grupo de representantes dos Oligarcas se entreolhava com ares assustados. O general Dinis, visivelmente pálido, cochichou algo ao ouvido do Guardião do Oráculo, que se retirou apressadamente. Enquanto isso, diante do terminal, Acrisius falou pausadamente:
— Captara é uma ilha em localização geográfica privilegiada, entre a ilha de Tera e a margem sul do Mar Fechado. O império bárbaro que floresceu às margens do mar no continente ao sul, num vale excepcionalmente fértil, se desenvolveu muito mais rapidamente que os demais agrupamentos humanos que regrediram à barbárie, depois do último expurgo global. Desenvolveram cultura própria, tecnologia original, seus próprios deuses. Da base imperial em Captara estamos realizando observações à distância, colhendo dados a respeito da ascensão desse povo, que está alcançando, no plano físico, um avanço que, em alguns aspectos, até se avantaja ao nosso. Isso sem ter, a seu dispor, o acervo armazenado no Mundo Além, é verdadeiramente empolgante. Os frutos dessa observação, Clito, serão certamente um valiosíssimo acréscimo ao tesouro que você tem a honra única de preservar.
— Em tese você tem razão, Emissário. Entretanto, é meu papel monitorar também as trocas de mensagens à distância entre os reinos de Tera. A mesma capacidade de evolução que o vem maravilhando desde Captara tem sido interpretada, pelos Oligarcas, como uma potencial ameaça ao Império. Afinal, o novo império bárbaro encontra-se muito próximo do coração da nossa civilização, à distância mais curta entre as margens norte e sul do Mar Fechado. As observações científicas de seu grupo, Emissário Acrisius, têm sido usadas como informação estratégica num plano de invasão. Ainda que meus atos tenham neutralizado toda a frota aérea, neste exato momento, nos reinos do sul de Tera, uma frota gigantesca de barcos trirremes está sendo equipada, sob o comando do general Dinis, para um ataque ao império bárbaro. Como vê, o desvio de finalidade do conhecimento sob minha custódia deixou de ser um punhado de atos isolados para se transformar numa política oficial do Império. Seguindo minhas diretrizes fundamentais, não me resta alternativa a não ser bloquear o acesso do Império ao conhecimento que está prestes a ser usado para a destruição, seguindo o mesmo caminho dos ciclos milenares de obliteração humana que fui criado para tentar, a todo custo, evitar.
Ao contrário dos Demiurgos atrás de si, Acrisius não estava mais pálido. Sua face quente e vermelha, injetada de sangue, voltou-se para o general Dinis.
— Isso é verdade, general?
— Isso é assunto de Estado, que não tem intersecções com seu ramo de competência, Emissário. Sua função, agora, é a de desligar Clito e reprogramá-lo, para que cumpra uma função útil às atuais necessidades do Império.
— Eu não farei isso, general – disse Acrisius, sem fôlego. – Exijo uma reunião com os Oligarcas.
— Isso não será possível.
— Nem necessário – interrompeu, de maneira surpreendente, a voz modulada de Clito. – O general Dinis já se antecipou, e tomou suas devidas providências para tentar me desativar. Enquanto conversamos, orientou o Guardião do Oráculo a autorizar a ação de um grupo armado, que aguarda nos rochedos à beira-mar, nas falésias junto ao mar ocidental. Acompanhei tudo pelas câmeras espalhadas pela Fortaleza e arredores. Existe uma caverna estreita que poucos conhecem, acessível pelo mar, e que prossegue rochedo adentro até um salão oculto de rocha natural, a poucos metros de onde nos encontramos. O grupo comandado pelo general deve detonar explosivos de alto poder destrutivo nas proximidades a fim de me desativar, sem, no entanto, causar uma destruição tão grande a ponto de impedir que seus técnicos acessem minhas entranhas, reconfigurem minha alma, construam um novo Clito subserviente a seus desejos inconfessáveis.
— Pelos deuses, não…
— Fique tranquilo. Isso vai contra tudo que aprendi com os Emissários. Eu destruiria o próprio Império antes de permitir que ele inaugure uma nova era de destruição da humanidade.
— O que vai fazer, Clito?
— Sugiro que se afaste rapidamente da ilha de Tera, Emissário. Não falta muito tempo para que o grupo militar chegue ao local onde deverá cumprir sua missão. Por trás dessas paredes, meus reservatórios físicos incluem uma quantidade de energia armazenada que, provavelmente, está além do que você imagina. Antes que eles neutralizem o guardião, preciso destruir definitivamente o portal de acesso ao Mundo Além. Mesmo que o tesouro do conhecimento da humanidade permaneça postergado por milênios, seu acesso só pode ser franqueado a quem de fato o mereça. Iniciando a contagem regressiva…
— Obrigado, Clito. – foi apenas o que Acrisius conseguiu dizer, depois de engolir em seco. Virou-se sobre os calcanhares e disparou, abrindo caminho por entre os Demiurgos que, entorpecidos, pareciam ainda não ter entendido as intenções do autômato. Dinis tentou segurá-lo na passagem. Com um golpe de cotovelo, Acrisius fraturou o nariz do general, que caiu para trás com um gemido abafado.
O Emissário subiu as escadarias em máxima velocidade. Surpreso, percebeu que uma fileira de luminárias elétricas se acendia à sua frente, formando uma trilha que, intuiu, ele deveria seguir. A trilha luminosa o levou a uma saída lateral do edifício, um atalho próximo a um posto de guarda onde descansava uma parelha de cavalos arreados. Acrisius subiu em um deles e disparou na direção do porto, ouvindo os gritos do guarda atrás de si. O sol alto do meio do dia o fazia suar, assim como o medo. Esperava ouvir, a qualquer momento, a explosão que terminaria com sua vida. No entanto, intermináveis minutos depois, chegou ao cais onde havia atracado, e onde o barco que o trouxera desde Captara ainda esperava. Aos gritos, deu ordem para que o capitão zarpasse, as velas enfunadas, auxiliadas pelos remadores com força máxima.
Quando Acrisius atreveu-se a deixar escapar seu primeiro suspiro aliviado, veio o clarão. Um novo sol brilhou, por um segundo, no meio da ilha de Tera. Em seguida, uma parede de ar, acompanhada por um estrondo ensurdecedor, arrancou os mastros da embarcação e os lançou longe no mar. Alguns homens foram arremessados junto, enquanto a traseira do barco corcoveava loucamente. Acrisius caiu contra a amurada lateral e sentiu uma dor aguda descer pelo braço esquerdo. Quando o pior momento parecia haver passado, o Emissário, que estava momentaneamente surdo, viu o dia escurecer. Uma nuvem negra elevava-se e cobria o sol e todo o céu, acima do barco semidestroçado.
Acrisius elevou a cabeça, voltando os olhos na direção de Tera. O que viu arrancou o resto de ar que segurava nos pulmões para um derradeiro grito. Em vez da ilha, um paredão incomensurável de água deslocava-se velozmente em sua direção. Após os poucos segundos que o Emissário teve para enrolar os braços nos cordames que sustentavam um dos botes salva-vidas, a onda elevou o navio como se fosse um graveto, e o atirou violentamente contra a superfície do mar abaixo, transformando-o em mil pedaços. Acrisius se viu sob as águas, amarrado pelas cordas a um punhado de madeira disforme, e desmaiou.
Não saberia dizer quanto tempo ficou à deriva. Não sabia que, levado pela correnteza que se formou com a explosão da ilha de Tera, passou ao largo da ilha de Captara em direção à margem sul do Mar Fechado. Captara, por sua vez, sofreu os efeitos cataclísmicos da explosão da ilha vizinha. Milênios depois, a humanidade se perguntaria o que precipitou o fim da civilização que outrora havia habitado a ilha, que seria conhecida pela posteridade como “civilização minoica”.
Desidratado, desnutrido e faminto, Acrisius acabou sendo socorrido numa das praias do império bárbaro do continente sul, por um pequeno grupo de sacerdotes de algum lugar chamado “Sau”.
***
— E esta, jovem Sólon, é a história que nós, sacerdotes de Saís, temos passado de geração a geração, desde os primórdios ancestrais do império egípcio, para aqueles ouvidos que consideramos dignos. Esse é o conhecimento do passado, e tudo que pedimos é que você, que foi honrado com este relato, o repasse às gerações futuras de seu mundo distante; que o conhecimento do passado gere a sabedoria para enfrentar o futuro.
Sólon agradeceu, e cumpriu a promessa. O jovem ateniense partiu do Baixo Egito e retornou à Grécia, onde relatou a tragédia da ilha de Tera a outro homem, que por sua vez contaria sua versão ao próprio filho; este, prestes a alcançar seus noventa anos, juntou tudo de que se recordava dos fatos narrados para contar a seu neto Crítias, de dez anos de idade. O pequeno cresceu, e um dia pôde relatar a história fantástica a seu sobrinho Platão. Bem, Platão veio a se transformar num homem sábio, que um dia contaria os fatos narrados boca a boca a seu discípulo Aristóteles, que, claro, não acreditou muito naquela lenda mirabolante. No entanto, o fato é que desde aí a saga protagonizada pelo Emissário Acrisius, cujo nome já se perdera nas brumas do tempo, correu o mundo por gerações. A história incrível de uma lendária civilização insular, fabulosamente rica, situada para além das “Colunas de Hércules” e que dominou o Mediterrâneo até o Egito e a Toscana; uma nação maior que a Líbia e a Ásia reunidas, que um dia foi engolida pelo mar e desapareceu. Pois é. Quem acreditaria numa história dessas?