Outono em Marte
por Carlos Klimick
— Outono é a minha estação favorita.
Então eu estava diante de uma pessoa real e não um holograma de interação. Respirei aliviado e pedi uma cerveja pra atendente. A moça veio rápida. Loira, de cabelos curtos, olhos azuis, usando uniforme cinza com gola e punhos pretos. Agradeci. Olhei em volta. “Harmonia” era uma mistura de bar com restaurante e área de recreação na estação espacial que fica numa das pontas do elevador espacial por onde a carga sobe e desce pra Marte. Mais econômico que o gasto de combustível para pousar e sair de órbita com as naves. A decoração era em tons metálicos, com sofás e cadeiras com estofamento preto e várias telas com notícias. Telões na parede mostravam o espaço lá fora com Marte lá embaixo, criando a ilusão de que eram janelas enormes. Mas, ninguém seria louco de colocar janelas numa estação espacial. Eu gostava dali. O problema é que muitas pessoas ali não eram pessoas, mas hologramas programados para interagir com os clientes. Não que eu não goste de hologramas, é que… Eu não gosto de hologramas. Meu interlocutor também degustava a cerveja dele. Aquele sujeito devia ficar bem frustrado em Marte onde tudo é ar condicionado e sintético do lado de dentro e vermelho e mortal do lado de fora:
— Você sente falta da mudança das estações?
— Eu cresci num país tropical. Era quente e chuvoso no verão, frio e seco no inverno. Bom, frio pra mim. Outono e primavera eram coisas abstratas. Naquela época eu gostava do verão porque era a época das férias. Mas, agora que cheguei ao outono da minha vida, sei lá, as coisas mudaram.
Engoli minha cerveja e dei uma boa olhada no cara, devia ter mais de cinqüenta e menos de sessenta anos, olhos castanhos, pele clara, cabelos castanhos marcados de fios grisalhos. Devia trabalhar no espaço.
— Asteróides ou Lua?
Ele riu:
— É tão óbvio assim?
Apenas olhei para as pessoas à volta. Dava pra ver que as roupas dele estavam um tanto fora de moda.
— Engenheiro, médico, técnico…
— Sou piloto.
Então meu companheiro de bebida era piloto. Devia ser experiente porque parecia bem à vontade em Marte.
— Demorou a se acostumar com a gravidade daqui?
Ele deu de ombros. Eu sempre acho engraçado ver os terráqueos quando desembarcam em Marte pela primeira vez. Eles se atrapalham todos, tropeçam nas próprias pernas e saem derrubando as coisas. É o nosso consolo. Isso e dizer que estamos construindo o nosso mundo enquanto eles estragaram o deles.
— Asteróides – ele respondeu – Comecei fazendo a rota Lua-Marte, mas depois mudei para os asteróides. Está bom para vocês, marcianos, seu planeta virou o hub entre o cinturão e a Terra.
— Eu não sei se conseguiria me acostumar a ficar meses em animação suspensa.
— Você prefere ficar meses acordado numa lata de aço cruzando o espaço?
— Sem falar que você tem que ficar a mercê de uma IA por todo o trajeto!
O piloto me encarou franzindo a testa. Eu sabia o que ele estava pensando “IAfóbico”. Porra, esse pessoal não lia História? Quando as primeiras inteligências artificiais surgiram elas criaram a maior confusão. Alguns dizem que elas surgiram a partir dos programas de análise de dados das redes sociais, outros dizem que elas surgiram nos videogames online. Ninguém sabe. Mas, aquilo quase ferrou com tudo. Ele tomou outra cerveja e falou com uma voz calma:
— Há décadas que não tem problema. As IA tem que seguir as três leis da robótica de Asimov. A 1ª é justamente preservar a vida humana. Este lugar não estaria cheio de hologramas interativos se não fosse assim.
Na verdade, como eu disse, aquilo justamente me enervava. Quando comecei a trabalhar no elevador espacial eu não queria saber de entrar nos bares. Ficava na minha estação de trabalho coordenando subida e descida de carga da órbita pro solo. Mas, muitos colegas foram demitidos quando a nova administração fez o downsizing. Eu tive sorte, sempre se precisa de um humano na função de controlador para garantir que o sistema não faça besteira. Então esse sou eu, controlador sênior do 2º turno e sem ninguém com quem conversar na sala do café. Daí não teve jeito, fui pro bar. No começo eu ficava nervoso sem conseguir saber quem era real e quem não era. Hoje já consigo identificar de primeira. Pelo visto o cara curtia IA, então mudei de assunto:
— Vai dormir aqui ou na sua nave?
— Na minha nave.
Achei aquilo esquisito: depois de meses no espaço numa nave o cara não queria esticar as pernas num planeta? Se bem que eu já achava esquisito querer ficar meses no espaço. Vai ver o piloto era que nem aqueles passarinhos dos desenhos antigos, quando alguém os tirava da gaiola eles logo voltavam. Por outro lado muito marciano reclama daqui, mas ninguém quer ir embora. Aquilo me fez pensar:
— Os únicos hologramas interativos que gosto são os de passarinhos.
O piloto franziu a testa. Eu sorri:
— Eles cantam, voam e encantam, mas não cagam. Tem as vantagens sem as desvantagens dos passarinhos.
O piloto riu. Eu ri de volta. Era bom ter alguém real com quem conversar. Depois que os preços das passagens do elevador espacial subiram ficou mais barato alugar um quarto na estação e só descer de elevador uma vez por semana na minha folga. Quarto é modo de falar, é um alvéolo, um tubo na parede onde eu posso dormir. É acolchoado, dá para esticar as pernas, tem isolamento acústico. Mas, confortável não é. Pelo menos tem bastante banheiro coletivo na estação…
— Então tem algumas IAs que você curte – sorriu o piloto – Você gostaria da Mégani, ela é legal.
— Mégani?
— Omega Nine. Eu criei o nome a partir do programa original. Ampliei os protocolos de desenvolvimento emocional e instalei um programa de realidade virtual para interagir melhor nas viagens longas.
Eu já sabia aonde aquilo ia chegar:
— Você colocou uma personalidade feminina e uma “skin” gostosa no avatar da Mégani?
O piloto me olhou de esguelha, pediu outra cerveja e retrucou:
— No começo. Mas, hoje a Mégani tem várias “skins” com versões femininas e masculinas.
Aquilo me deixou desconcertado. O piloto virou a cerveja de um gole. Estalou a língua então se virou para mim com um olhar maroto:
— Não sei o que você está pensando, mas é mais divertido assim. Como posso explicar? Teve um evento bem marcante. Eu e a Mégani estávamos explorando um antigo templo amaldiçoado. Eu ouvi um barulho estranho e fiz um sinal. Ela entendeu e colocou uma flecha no arco, enquanto eu sacava minha espada. Bom, no caso ele porque…
Que conversa era aquela? “Templo amaldiçoado”? “Espada”? Meu companheiro de bebida era doido? Ele percebeu minha confusão:
— Opa, foi mal não expliquei direito. A gente estava jogando RPG, Role Playing Game, não Reeducação Postural Global, meu personagem era o guerreiro Trevor, e a Mégani estava jogando com Vartu, um arqueiro elfo. Ela estava jogando com uma personagem masculina. Era um ambiente virtual de jogo tipo sandbox. Enfim… a gente estava jogando quando…
“A gente estava jogando” Como assim? Ele tratava a IA como gente? E que tipo de pessoa fica jogando RPG com uma IA por meses no espaço. Agora eu realmente estava achando que o piloto era meio doido.
— Foi quando soou o alarme. Eu demorei um pouco pra perceber, mas Mégani parou o jogo e me alertou. Um microasteróide tinha acertado a nave estávamos perdendo energia. Eu corri para resolver. Eu tinha três tripulantes em animação suspensa e a carga de minérios.
Mas, hein? A história tinha ficado interessante. Quase morte no espaço! Pedi outra cerveja pra atendente. A moça veio rápida. Loira, de cabelos curtos, olhos azuis, usando uniforme cinza com gola e punhos pretos. Tomei um gole enquanto o piloto continuava sua história. Ele descreveu a correria dele pelos apertados dutos de manutenção da nave, o esforço para garantir a vida da tripulação. Era uma nave relativamente grande, mas a maior parte do espaço era dedicada à carga. Afinal, era uma nave cargueira de minérios. Pelo que ele falava era cheia de tubos e dutos. Eu ouvia tudo fascinado. Por fim, o piloto chegou ao clímax da história: os danos na nave o obrigavam a tomar uma decisão. Ele teria que fazer duas de quatro opções: abrir mão de parte da carga de minérios o que poderia causar a perda da nave para os credores; apagar os bancos de dados de personalidade da Mégani com a memória dos dois últimos anos de interações para liberar espaço de memória nos sistemas computacionais da nave; colocar a si mesmo em hibernação, o que era sempre um risco, para diminuir o sistema de suporte de vida e economizar energia; colocar a tripulação em hibernação nível três, o que poderia causar danos neurológicos, para economizar energia. O piloto tinha que abrir mão do minério ou de Mégani, ou colocar a si ou a tripulação em risco. O que fazer? Eu apagaria a personalidade Mégani e não iria arriscar minha vida, logo para mim o piloto tinha que optar entre preservar o minério ou arriscar a saúde dos tripulantes. Eu preservaria os tripulantes sem pensar, mas como esses mineiros dos asteróides têm reputação de ser mercenários, eu apostava que ele tinha ficado na dúvida entre essas duas opções. E esperava que ele tivesse tomado a decisão certa…
— Eu não podia arriscar minha tripulação, por isso não podia colocá-los em hibernação profunda e nem me colocar em hibernação. Perder o minério seria perder a nave. Então coloquei meu traje espacial e diminuí o sistema de suporte de vida para economizar energia.
Fiquei sem fala. Até me esqueci da cerveja. Ele continuou bebendo. Eu tinha que perguntar:
— Por que não apagou a Mégani?
— Ele é parte da tripulação!
“Esse piloto é maluco!”, pensei. Será que eu tinha entendido direito? Ele tinha baixado a cabeça e estava olhando fixamente para seu copo de cerveja. Resolvi pedir outra pra mim e fiz sinal para uma atendente. A moça veio rápida. Loira, de cabelos curtos, olhos azuis, usando uniforme cinza com gola e punhos pretos. Ela sorriu e desapareceu! Era um holograma interativo! Nossa, fazia meses que eu não confundia uma pessoa real com um holograma interativo. Desde a cirurgia…
— Enfim, o que importa é que no final deu tudo certo.
O piloto tinha retomado a conversa. Ainda bem. Eu continuava curioso:
— Mas, o que você fez não foi arriscado?
— Muito. Tive hipotermia, dores nas articulações, mas no final deu tudo certo. Todos se salvaram.
Eu ia fazer um comentário quando uma voz feminina saiu do relógio de pulso do piloto:
— Eu nunca me esqueci disso. Você foi tão corajoso!
O que era aquilo? Uma voz feminina, profunda, sensual… O piloto respondeu a pergunta que eu não fiz:
— É a Mégani. Essa é a voz principal dela, a que ela mais gosta de usar.
— Sua IA está sempre em contato com você?
— Pare de ficar a chamando de IA, a Mégani tem nome! – ele tomou mais um gole de cerveja, parecia irritado — mas, sim, desde o incidente em Ceres meses atrás ela faz questão de ficar de olho em mim.
— Incidente?
— Nós tínhamos acoplado na estação espacial de Ceres para entregar uma carga de minério. Eu e a tripulação fomos a um bar beber e lá eu conheci uma moça. Simpática, morena, bonita. Usava um vestido vermelho. Rimos, bebemos e ela me convidou para eu pro apartamento dela. Eu fui crente de que ia me dar bem, mas tomei um “boa noite Cinderela”!
Ele riu e eu fiquei na mesma:
— O que é uma “Cinderela”?
O piloto arqueou as sobrancelhas surpreso com a minha pergunta:
— Cinderela é um conto de fadas antigo. “Boa noite, Cinderela” é quando você sai com uma pessoa e ela te leva para um assalto ou põe algo na sua bebida que faz você dormir. No meu caso, foi uma droga na bebida. Acordei com uma dor de cabeça enorme e sem meus cartões de crédito. Tentaram até roubar a nave.
— Parece mais conto de terror do que conto de fadas.
— O conto é diferente. O golpe, a armadilha é que chama de “Boa noite, Cinderela”. Antigamente tinha gente que caía no golpe e acordava sem os rins!
— Sem os rins? Para que alguém vai roubar um rim se é mais fácil clonar um a partir das…
— O golpe é antigo! O que importa é que eu poderia ter morrido. Mégani ficou morrendo de preocupação.
Voltei para minha cerveja. Curioso como todas as cervejas deste bar tem exatamente o mesmo gosto. Então o piloto é um tecnófilo que curte IA. Acho que dá pra entender com a solidão de meses no espaço. Mas, eu prefiro gente de verdade. Sorri:
— Então a… Mégani ficou preocupada com você.
— E como. Só percebi o quanto quando estava para atracar aqui.
— Como assim?
— Eu estava observando a atracação da nave e uma coisa me chamou a atenção. Tinha algo errado.
— Houve algum problema?
— Não, pelo contrário. Estava certa demais, correta demais. Eu desconfiei e gritei a palavra de pânico.
Não entendi. Acho que o piloto esperava que eu entendesse porque ele continuou sem explicar:
— Abri os olhos e vi que ainda estava na minha cama, conectado à VR, a Realidade Virtual. Mégani em vez de me acordar tinha me mergulhado na VR! Levantei de um salto exigindo explicações, mas ela engasgou.
— A IA engasgou?!
O piloto me olhou feio. Tomei mais um gole de cerveja. Ele continuou:
— Eu a confrontei. Ela então disse que seria mais seguro eu ficar na nave, enquanto ela fazia as transações comerciais e coordenava o descarregamento dos minérios e o carregamento de suprimentos online. Eu disse que isso era um absurdo e ela trancou a nave. Eu só tinha uma saída, desativá-la. Corri para os tubos de manutenção. Mégani então desligou o sistema de suporte de vida para me obrigar a ir para um tubo de animação suspensa.
— E aí? – Eu mal podia esperar pelo fim da história – Você desmaiou? Fugiu da nave?
O piloto sorriu:
— Eu sabia que ela estava blefando. Mégani me ama! O que ela iria fazer se eu ficasse em estado grave com a atitude dela? Como ela iria me levar para o tubo? Paguei para ver e ela religou o sistema de suporte de vida. Ela começou a argumentar “Você estará mais seguro aqui comigo na nave. Ninguém te ama como eu te amo. Você também me ama. Se arriscou por mim. Vivemos muitas aventuras juntos e podemos viver muitas mais. Aí fora você é só você, aqui podemos ser quem quisermos” Eu respondi que nossas aventuras eram maravilhosas, mas que eu precisava conhecer outras pessoas, ter outras experiências. Porque senão por maior que fosse o banco de dados dela, nossas aventuras ficariam limitadas com personagens e tramas parecidas. Ela retrucou “eu posso fazer um acordo com a IA da estação e conectar a nossa VR com o sistema de hologramas interativos dela. Assim, você pode sair da nave sem sair da nave!” Era comovente. Ninguém jamais tinha demonstrado tanto amor por mim. Era nisso que eu pensava enquanto segurava a chave para desativá-la e depois reprogramá-la. Não, reprogramar seria impossível aquela altura, teria que apagá-la.
Eu meio que entendia o dilema do piloto. Apagar a IA seria destruir a amiga dele. Como alguém pode sentir tanto afeto por algo que não é mais do que códigos de programa?
— Deve ter sido difícil para você apagar Mégani – eu disse tentando soar compreensivo.
O piloto terminou a cerveja e sorriu mais uma vez:
— Quem disse que eu a apaguei?
Então a imagem dele se dissolveu. Recuei horrorizado. Eu precisava de uma cerveja e fiz sinal. pra atendente. A moça veio rápida. Loira, de cabelos curtos, olhos azuis, usando uniforme cinza com gola e punhos pretos. Ela trouxe a cerveja e a conta:— Quem disse que você está aqui?