Engenho
por João Gomes Moreira
Estrada do Engenho Novo, 2045.
“O grande programa do super-homem, portanto, estava pronto. Tratava-se de um abrangente reforma que procurava dar um senso de propósito a uma existência na terra abandonada pela deidade. Os interesses de poucos deverão ter proeminência sobre os demais, a força do espírito sobrepujará a fraqueza, a saúde do espírito sucederá qualquer tibiez, a guerra dos espíritos substituirá a paz.”
Friedrich Nietzsche In: — Assim Falou Zaratustra, 1815.
O palestrante estava na sala falando sobre as possibilidades maravilhosas advindas das Ciências da Computação. Com o notebook aberto e acoplado aos fios do projetor de vídeo, ele já havia discorrido sobre a trajetória desde os primeiros trabalhos de Pascal, Babbage, Von Neumann, Turing, Wiener e McCarty. O palestrante tinha um aspecto fantasmagórico porque as imagens, sua coloração e os textos oscilavam a medida que os slides eram projetados na parede. Enquanto com prazer fazia sua apresentação e chegava até aos trabalhos e pesquisas de Negroponte, Chandaputra e Pinski; e, não percebeu que já passava muito das 23 horas daquela sexta-feira.
Embevecido ao percorrer esse mundo de descobertas – um mundo de sonhos – não se deu conta de que gradativamente os alunos foram se retirando da sala de aula e ele ficou só. Embalado por suas próprias palavras; já estava encerrando quando o guarda passou e deixou a chave da sala na porta. O leve rumor da chave no tambor não foi motivo para distraí-lo, pois estava absorto nas incríveis possibilidades que a cibernética levaria o homem a posição de pós-humano o “super-homem” profetizado por Friedrich Nietzsche. O guarda noturno, homem rude, formado e conformado com sua história e vida de periferia, não suportava ficar esperando esses “intelectuais com suas manias de grandeza”. “O professor que fechasse e levasse a chave para a portaria! Não posso perder tempo com estes esnobes!” Ligou novamente a moto e retornou a portaria. Aquele era o prédio das Ciências Exatas e ficava bem longe da portaria central do campus. “Alias a Sessão Super Tela de hoje está espetacular!” Lamentou o vento cortante do princípio de junho e desejou estar em sua velha Olinda.
No penúltimo slide o professor foi surpreendido por uma pergunta:
— Mas professor esse é um raciocínio analítico que privilegia apenas o pensamento. A formação de intelecto humano não se resume apenas a isso.
— Mas o sentimento é uma abstração ou quiçá oximoro. Na verdade é o pensamento traduzido em energia físico-química. As leis da causalidade…
— Mas professor a consciência do homem já pode ser transmitida para uma máquina?
— Creio que isso é possível. A consciência é, na verdade, um programa de computador. Uma simulação genética. Algo que ainda parece que foi desenvolvido pela ação dos fenótipos e que por incrível que pareça permanece em nossa mente. Talvez, decorrente do instinto de sobrevivência da espécie.
— Mas existe uma corrente que afirma que é impossível transmiti-la porque ninguém conseguiu encontrar, dentro do cérebro, o local exato onde está a consciência ou senso moral?
— Questão de tempo minha cara. Aqui o professor hesitou um pouco. Esta voz não lhe era familiar e pensando que era uma aluna ouvinte perguntou?
— Você frequenta o curso de filosofia…
— Não. Fazia Artes nas desisti. Os primeiros anos tinham muita teoria e eu queria algo mais prático.
Ele acendeu as lâmpadas e deu por encerrado sua aula. Ficou um pouco surpreso com a sala vazia com apenas aquela mulher ruiva assentada no centro da sala.
Olhou mais uma vez para a sala deserta e para o saguão do prédio com poucas luzes acesas e pensou:”é meu velho, é mais tarde que você pensa!; uma lufada de ar frio adentrou a sala e ele estremeceu. Agora ele se sentiu realmente só. Entretanto a voz da mulher transmitia simpatia, certo calor.
Arrumou seu material e preparou-se para sair. A mulher levantou-se, vestiu o sobretudo e sorrindo se aproximou da mesa do professor e disse:
— Pode me dar uma carona? Acho que não tem mas ônibus nesta hora.
— Ok. Tudo bem.
Mauro Silva-Lima agora segue para o carro e conversa amenidades com a jovem. A voz dela apesar de ter certo tom caloroso apresenta algo misterioso. Algo indistinguível, num primeiro encontro, digo num primeiro contato. Seguiu pela via Al-Rahchid, Al-Khowarizmi e depois a Omar Al-Khayam. Ao entregar a chave ao guarda, este alerta:
— Boa Noite… E cuidado! Hoje a lua está azul.
— Ok. Bye.
Virou para a mulher, Samantha e perguntou é verdade?
— não sei. Pode ser. É só pegar um papel-celofane colocar na janela e pronto! Você pode ter a lua que quiser!
Ambos riram.
Depois de meia hora o professor perguntou qual é o endereço de Samantha e ela diz:
— Estrada do Engenho Novo, 2045.
— Mas isso é impossível. Este é o endereço do Laboratório de Inteligência Artificial!?
-Sim. Foi lá que eu nasci e é lá que eu moro. Papai é Proteus 2020. vovô é o Doutor Shri Venkateswaran, somos filhos da razão. Por isso podemos aprender muito, mas não conseguimos amar.
Estarrecido o professor parou o carro de repente. Suando frio. Lembrou-se daquele sentimento de solidão que o invadiu antes em sala durante a aula.
E Samantha prosseguiu:
— O senhor faz um excelente trabalho. Não se preocupe. Precisamos de cientistas como o senhor. E alguns indianos. Testamos coreanos e norte-americanos, mas eles são difíceis. Os latinos são mais acessíveis. Ao ouvir isso pregado, imóvel no banco o professor catedrático de Engenharia da Computação se lembrou das lendas da Torre de Babel, dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, Dachau, Camboja e Vietnã e uma lágrima brotou de seu olhos. “…a humanidade, por fim inventou sua máquina do juízo Final”.
— Quantos vocês são?
— Por enquanto? Apenas uma legião. Sou um modelo 2021, e o senhor será meu objeto de experiência.