Dia de Visita
por Gilson Cunha
Fortaleza fantasma, Não-verso, data desconhecida.
— Ei, tem transmissão entrando! — Disse Otávio. Ele sempre ficava animado com esse tipo de coisa.
— Instantinho. Deixa eu terminar o mate. — disse Alfredo.
— E se for importante?
— Sempre é importante. Abre aí — disse Alfredo.
O rapaz ainda estava aprendendo a controlar os painéis da sala de controle daquela instalação. Dois anos antes, se dissessem a ele que um dia dispositivos eletrônicos seriam controlados por telas de toque ele riria de seus interlocutores. E não podia ser diferente, dado que ele nasceu em 1943, quando tela era só um tecido bem fininho colocado nas janelas para evitar mosquitos, ou um nome chique usado para pinturas. Mas ele aprendia rápido.
A enorme tela diante deles se iluminou e nela era possível ver a manchete da edição holográfica do The New York Times de três de abril de 2050:
ENCONTRADA EVIDÊNCIA INCONTESTÁVEL DE VIDA EM MARTE.
JPL-Pasadena, Califórnia.
“O consórcio internacional responsável pela operação do Mars Orbiter-50 revelou hoje imagens do que parece ser um veículo e duas formas humanoides na superfície de Marte, próximo de uma das extremidades do Vale Marineris. As fotos foram obtidas na semana passada, mas só foram liberadas após extensa análise e verificação independente por seis diferentes equipes internacionais. Visto de cima o veículo guarda uma estranha semelhança com um antigo modelo utilitário da Volkswagen. É possível que se trate de uma pequena nave de desembarque, com autonomia limitada à órbita. Após uma nova passagem sobre a região, fotos recentes do Mars Orbiter 50 não registraram qualquer traço do veículo ou de seus ocupantes. O conselho de segurança planetário decidiu mandar um membro da base semipermanente dos Estados Unidos da América investigar pessoalmente o local. A Volkswagen se recusou a comentar o incidente.”
— Ah, para! — Disse Otávio.
— Ah, para? Isso é tudo que tens a dizer guri?
Ele detestava ser chamado de guri, principalmente depois de ter descoberto que tinha, na verdade, quase quarenta mil anos de idade. Mas essa é outra história.
— Do jeito que está até parece que é minha culpa isso daí…
— E não é? Fomos parar naquele buraco para esconder aquele doido, antes que o pegassem e o impedissem de cumprir seu papel história.
— Pichar a cidade inteira com o nome dele?
— Isso também. Mas tudo o que eu precisava era de que tu ficasses de olho nele, só por meia-hora. Mas não. Tinhas que deixar o cara zanzando, tempo o bastante para pichar o próprio nome naquele lugar?
— Pichação tem em todo o lado. — Disse o rapaz.
— Não tem não. Não em Marte, no tempo em que ele era habitável e, na Terra, sequer havia vida multicelular.
— Eu não tenho culpa. Foste tu quem se esqueceu de ligar o dispositivo de camuflagem. — Disse Otávio.
— “Eu não tenho culpa. Foste tu que se esqueceste de ligar o dispositivo de camuflagem.” — Disse Alfredo, arremedando o rapaz com uma careta de desdém. — Não é capaz de cuidar de uma camuflagem bem mequetrefe e ainda quer pilotar a Cremilda? Vai te deitar, vinagre. Foi por tua causa que a gente teve que voltar lá, procurando por uma pichação num muro de quase três bilhões de anos. E o pior é que ela ainda está lá, em algum lugar debaixo de toda aquela areia.
— E agora? Como é que a gente sai dessa? — Indagou o rapaz.
— Podemos voltar a 2050 e avisar a nós mesmos para não fazer isso, o que vai dar um puta paradoxo. Podemos mandar uma mensagem para nós mesmos no passado e abrir uma nova linha de tempo, mais uma, só para complicar nossa vida, ou a gente pode lidar com as consequências de nossas mancadas, como gente adulta.
— Nunca te vi fazer isso.
— Nem eu, mas olha só, tem uma primeira vez pra tudo.
***
— Deixa ver se eu entendi. A gente está aqui para produzir provas falsas de nossa própria existência e encher a mídia com esse tipo de bobagem? — Disse Otávio.
— Mais o menos. Mesmo antes da internet já havia um número imenso de gente que curtia essas coisas. Tu mesmo já foste um posadista[1], lembra?
O rapaz enfiou as duas mãos no rosto e desejou desaparecer. Mas ainda estava lá quando Alfredo voltou a falar.
— O problema é que há muita gente gritando ao mesmo tempo. Muito ruído. O que precisamos é de um porta-voz. Alguém com credibilidade. Eis O Escolhido — Disse Alfredo, com um sorriso sinistro, apontando para a tela da sala de controle da Fortaleza Fantasma.
— Isso é uma pegadinha, né? — Disse Otávio.
— Deixa de ser boi-corneta.[2]
Inseli Park, Lucerna, Suíça, 1990.
A maior parte da turma já tinha voltado para casa. Menos o menino. Sua paixão pelo futebol, e pelos esportes em geral, jamais o abandonaria. Pelé, Yáshin, Paolo Rossi, Natalia Navratilova, eram seus deuses. Mas, a bem da verdade, ele era péssimo. Um autêntico cabeça-de-bagre, na antiga gíria do futebol brasileiro. Entretanto, estava decidido a colocar sua marca no esporte, de um jeito ou de outro. Se a ele só cabia ser gandula, ele seria o melhor gandula que alguém pudesse ser. Passou aquele final de tarde correndo, fazendo agachamentos, correndo, até cansar e ficar de bobeira no gramado, olhando para o céu cinzento daquele final de verão.
Foi então que ele a viu. Uma elipse alaranjada, brilhante como o sol poente, cruzando os céus sobre a cidade antiga e se aproximando, em sua direção. O objeto media aproximadamente quatro metros e meio. Parecia feito de luz. Desceu suavemente a menos de dez metros de onde ele estava. O impulso natural do menino seria o de correr. Mas, de um modo que não conseguia entender, permaneceu parado, de pé, olhando para o objeto que se abria.
Duas silhuetas humanoides saíram de dentro do veículo. Uma devia ter aproximadamente um metro e oitenta de altura. A outra não chegava a um metro e setenta. Caminharam na direção dele, em silêncio, iluminados pelo objeto atrás delas.
— P-por favor, não me machuquem— Disse o menino.
— Não estamos aqui para isso. Representamos um consórcio de civilizações que tem visitado seu mundo há milênios. Você entende? — Disse o mais alto.
— S-sim— Respondeu o menino.
— Precisamos preparar seu povo para o primeiro contato. Por isso, temos procurado por aqueles com potencial para ser nosso embaixador na Terra. E você foi o escolhido.
— Eu? Mas tudo o que eu faço é jogar futebol… — Respondeu o menino, sem jeito.
— Confie em mim. O futebol é uma carreira fugaz. Depois dos trinta, kaput. Você pode fazer muito mais.
— Mas… Mas eu amo esporte! — Protestou o menino.
— Ninguém disse que você precisa esquecer o esporte. Você pode buscar uma carreira que combine seu amor pelo esporte e nossa mensagem para o mundo. Você pode se tornar um comunicador.
— E como é que se faz isso?
— Você pode se tornar um repórter esportivo, ora. Fausto Silva começou assim.
O menino o olhou, desconcertado.
— Você pode se graduar em comunicação, com ênfase em comunicação esportiva— Disse o humanoide mais alto.
O humanoide baixinho se mantinha em silêncio, mas algo em sua postura denunciava um grande desconforto com tudo aquilo.
— Mas eu nem terminei a escola…
— Pense nisso. E continue observando os céus.
— Meu pai não gosta dessas coisas de disco voador. Diz que é conversa de gente louca e de viciados.
— Com o tempo ele entenderá. Algum dia nos encontraremos de novo. Até lá, queremos apenas…que busquem conhecimento. Um diploma em comunicação social ajuda. Temos que partir agora.
— Esperem! E se alguém perguntar? O que eu digo? Quem são vocês?
Os dois humanoides deram um passo adiante, saindo da ofuscante luz alaranjada vinda do óvni atrás deles. Ambos vestiam macacões colantes de um material desconhecido, mas de cores diferentes. O humanoide alto usava um traje preto, com linhas violeta nas articulações. O baixinho usava um traje similar, só que verde com articulações amarelas. E ambos usavam cabelos arrepiados e duros, como se os fios tivessem sido unidos com laquê, a ponto adquirirem a forma de leques abertos sobre o topo suas cabeças. Ou enormes vassouras de piaçava.
O mais alto tinha um olhar profundo e sereno. O baixinho parecia nervoso e, inexplicavelmente, usava um par de óculos de aros finos e lentes redondas, do tipo que John Lennon usaria se estivesse vivo.
— ALIENS, meu filho. Diga que é tudo sobre ALIENS— Disse o humanoide alto, gesticulando com as mãos, num gesto que lembrava um pescador daqueles BEM mentirosos, contando sua última façanha.
— O-o o outro não fala? — Indagou o menino.
O humanoide alto encarou o baixinho. Ele não teve escolha a não ser repetir o mesmo gesto com as mãos e dizer (sem muita convicção):
— Aliens. É isso aí. Nós somos Aliens.
Os visitantes deram as costas a seu escolhido e se dirigiram ao veículo. Pode ter sido a emoção, ou uma ilusão de ótica gerada pela luz que envolvia o óvni. Mas, por uma fração de segundo, o menino teve a impressão de ter visto, de relance, sob a intensa luz alaranjada, uma antiga van da Volkswagen.
— O que foi aquilo, cara?! Precisava aplicar um balde de mouse na peruca? Nossos trajes geram disfarces holográficos, sua anta! O pobre guri terá pesadelos durante anos. E quer saber? Eu também. Me senti como um figurante de The Rocky Horror Picture Show! — Disse Otávio, indignado tentando arrancar o aplique duro como palha, firmemente colado à sua cabeça.
— Ei! Eu não sabia que tu assistias essas coisas.
— Não assisto. Só entrei no Bristol[3] para fugir da chuva, numa sessão da meia-noite, em 1982. Foi lá que eu vi esse filme. E nem escapei da chuva. O lugar estava cheio de goteiras…
Hospital da Força Espacial Norte-Americana, Baltimore, Maryland, dezembro de 2054.
— Capitã McGraath— Disse o médico, se esforçando para tornar sincero um sorriso tão verdadeiro quanto um daqueles comerciais de bugigangas inúteis dos primórdios da TV paga— É da opinião do conselho que a senhora tem feito muitos progressos, mas ainda é cedo para liberá-la.
— Mas eu queria estar em casa para o natal… Por favor, eu imploro, eu já disse tudo o que sabia. Isso não é justo— Disse a mulher de cabelos castanhos curtos, rosto redondo e olhos esbugalhados.
Havia dois civis junto com o médico. Um homem de cabelos castanhos e uma mulher ruiva. Ambos estavam de óculos escuros, o que parecia bem inútil, considerando que estavam todos em ambiente fechado, numa sala de reuniões dotada de uma suave iluminação indireta.
— A senhora precisa entender nossa posição. Não encontramos qualquer evidência física que substancie suas alegações… — Disse o médico, bastante constrangido.
— Mas tem o filme! O filme! Eu o gravei sem que ele soubesse que estava sendo filmado!
— Capitã, por favor… a senhora precisa de mais tempo relaxando. Entendemos o que o estresse pós-traumático pode fazer à mente, ainda mais no ambiente hostil do espaço… — Disse o médico. Era um sujeito calvo, de seus quarenta anos. Usava insígnias de major na lapela do jaleco.
— Não! Não! Eu exijo uma revisão do meu caso! O filme. Eu quero ver o filme! — Disse ela, socando a mesa.
— Tudo bem. — Arquivo classificado McGraath, missão Marineris 3— Disse o médico, para ninguém em particular.
No mesmo instante o enorme monitor daquela sala de reuniões se iluminou revelando um estranho céu avermelhado.
— Aqui é a capitã Karen McGraath — Dizia a voz em off, enquanto a câmera focava um trecho do solo vermelho, com o horizonte ao fundo. — Dentro de instantes estarei no ponto de encontro com o alienígena. É muito importante que…
A narração foi interrompida. A imagem da planície marciana começou a perder definição. Os pixels multicoloridos foram se reajustando até formarem uma nova imagem.
— Mas…mas o que é isso? MAS O QUE É ISSO?! MAS O QUE É ISSO?! MAS O QUE É ISSO?! NÃO FOI ISSO QUE EU GRAVEI! O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO?! PAREM! PAREM COM ISSO! VOCÊS SABEM QUE EU DIGO A VERDADE! — Gritou a Capitã McGraath, saltando da cadeira, vestida com seu roupão azul marinho e seu pijama de paciente da ala psiquiátrica do Hospital da Força Espacial.
Duas mulheres enormes, vestidas de branco, se postaram ao lado dela. McGraath respirou fundo, tentando se acalmar, e voltou a se sentar.
— Capitã, por favor, é para o seu bem. Nunca houve vida inteligente em marte. A senhora sofreu um colapso devido ao estresse da missão. Hiperventilou, como resultado de um defeito no regulador de sua mistura respiratória e imaginou tudo.
— Mas… Mas VOCÊS ME MANDARAM LÁ CHECAR AQUELA MALDITA VAN DA WOLKSVAGEM! SAIU NA MÍDIA! TODO MUNDO VIU AQUILO!
— Van da Volkswagen? — Indagou a mulher ruiva de terninho preto e óculos escuros. Era primeira vez naquela entrevista que ela levantava a cabeça de seu dispositivo pessoal de mídia para ver o que se passava. Chegou até a tirar os óculos escuros.
— Isso é uma piada da omninet — Respondeu seu colega civil de cabelos castanhos— Uma Van da Volkswagen pilotada por alienígenas. Todo dia aparece um engraçadinho no BEYONDZILLA com uma foto dela. Tem de tudo. Um alto relevo, supostamente descoberto em Luxor, em 1927, datado da oitava dinastia, uma pintura rupestre de 25.000 anos numa caverna da Espanha, Um entalhe feito atrás de um Moai da Ilha da Páscoa, e até uma foto do dia D, na qual ela apareceria bem no cantinho, ao lado de um veículo de desembarque de tropas. Todas se revelaram manipulações grosseiras, como aquela boca do Henry Cavill.
— Quem é Henry Cavill? — Perguntou o médico, surpreso.
— Pensei que memes tinham sido declarados ilegais pela ducentésima oitava emenda— Respondeu a ruiva.
— E foram, durante o quarto mandato da presidenta Oprah. Os caras usam servidores estrangeiros para evitar rastreio— Disse seu colega, que vestia um terno preto bastante genérico.
— Malditos Manbabies. — Disse a ruiva. — Não percebem os danos que causam à rede?
— SEUS RETARDADOS! VOCÊS OUVIRAM ALGUMA COISA DO QUE EU DISSE? EU SEI O QUE VI! VOCÊS ME MANDARAM LÁ PARA ISSO! EU QUERO SAIR DAQUI AGORA! EU QUE…— Urrou ela, ao levantar. Ela parecia pronta para ir até o médico do outro lado da mesa e estrangulá-lo. Mas isso só durou até levar a picada da micro seringa no pescoço, quase imperceptível, dada por umas das mulheres vestidas de branco.
— Alfredo…o nome dele é Alf… — Gemeu, antes de apagar por completo.
A Capitã McGraath não ofereceu resistência. Foi arrastada pelas duas grandalhonas para sua cela acolchoada na ala psiquiátrica do hospital.
O médico permaneceu calado. Se rosto era a imagem do fracasso. Sentia-se pessoalmente culpado por não conseguir ajudar aquela pobre mulher.
— Acho que acabamos, Doutor Abrams. Pode deixar o filme rodando? — Perguntou o civil de cabelos castanhos.
— Hã…claro— Disse o médico, deixando a sala, intrigado pelo pedido do investigador.
O homem se levantou e ficou estudando a cena
— Felix, por favor— Disse a ruiva, se levantando. — Eu estou cansada. Quero voltar para D.C., ir para casa. Porque você perde tempo com essa bobagem? — Disse ela, estendendo a mão para tela.
— Você sabe o que é isso?
— Um desenho animado estúpido do qual ninguém mais se lembra?
— Não há mais cópias disponíveis desse desenho desde a Grande Reforma Cultural de 2038. Isso não devia existir em lugar nenhum. Essa e todas a animações da Era Pré-Despertar foram apagadas de todas as bases de arquivos digitais. As poucas cópias do filme em celuloide foram queimadas em cerimônias solenes no American Film Institute. Esse desenho é uma impossibilidade quase tão grande quanto a história de uma Kombinationsfahrzeug pilotada por um alienígena em Marte.
— Saúde, Felix— Respondeu ela, entediada.
— Isso é alemão, Deana.
— Tanto faz— Disse ela, deixando a sala enquanto seu parceiro olhava a tela, mesmerizado.
O dispositivo mostrava, em altíssima definição, a cena de um episódio clássico do Pica-Pau, em um looping de quase vinte minutos, no qual o personagem socava a palma da mão enluvada, enquanto gritava:
“Fui tapeado! Fui tapeado! Fui tapeado! Fui ta…”
“Fomos todos tapeados”, pensou o investigador de assuntos internos da Força Espacial Felix Mulholland, correndo para a porta.
— A cela! Leve-me à cela da Capitã McGraath! E Chame a segurança!— Ordenou ele, de modo ríspido para uma das enfermeiras.
Felix encontrou sua colega diante da cela, acompanhada das duas mulheres de branco que tinham arrastado a capitã de volta a sua contenção. A porta estava fechada e as luzes desligadas. O doutor Abrams chegou por último, com passo apressado e sem entender o motivo de tamanha desordem.
— Abram — Disse Felix.
O doutor Abrams confirmou a ordem com um olhar apreensivo.
As luzes foram acesas assim que eles entraram. A cela estava vazia.
— Como você sabia? Como foi que…? — Indagou a investigadora especial Deana Skeffington, perplexa.
— Esqueça. Esse é apenas outro daqueles casos que pegamos semanalmente e que não nos levarão à parte alguma. Eles nos obrigarão a arquivá-lo. Eu já cansei disso. Vou me concentrar em investigar coisas práticas, como o superfaturamento na compra de novos propulsores para as missões ao espaço profundo ou de material de construção da nova base lunar, coisas de gente normal. Se tudo der certo me aposento em trinta anos. Com o plano de aposentadoria privada e uns investimentos, terei um fim de carreira modesto, porém confortável.
— Mulholland…Você está bem? — Perguntou a ruiva.
— Então eu estava certa. Existe mesmo vida alienígena! — Disse Karen McGraath, movendo a cabeça para todas as direções como uma criança com TDAH[4] perdida no meio de uma Comic Con.
Eles andavam por uma cidade que parecia feita de porcelana azulada, em algo que lembraria um agitado e multicolorido mercado do oriente médio, com a diferença de que ela não conseguiria adivinhar quase nada do que era vendido naquelas bancas. Em algumas delas havia seres inteligentes, a maioria não humanoide, vendendo o que pareciam ser hortaliças. Em outras, parecia que havia hortaliças vendendo seres não humanoides. O ar era preenchido por uma mistura de aromas que lembrava algo como erva doce, manjericão com Coca-Cola, açafrão, bacon com chocolate e alho com amoníaco.
— Sim. Mas nós não somos “aliens” — Disse Alfredo, fazendo aquele gesto exagerado com as mãos— Somos só uns freelas que já trabalharam para aliens uma vez. Eram caras bonzinhos, mas chatos pra burro, que lutavam contra outros aliens malvadões e, de vez em quando, contra alguns Homo sapiens que são umas verdadeiras malas-sem-alça. — Disse Alfredo, em inglês, com sotaque nova-iorquino.
— Sabe o que mais me intriga na história de vocês? Por que diabos a primeira raça inteligente a surgir no universo iria escolher vocês como agentes de campo? Sem ofensa. Vocês deviam ser Americanos. Ou russos. Ou chineses. Ou japoneses. Ou indianos. Ou quenianos. Talvez finlandeses. Eu entenderia até se vocês fossem canadenses. Mas brasileiros? Sério? Qual é a contribuição de vocês para a humanidade?
— Moça, eu achei isso muito ofensivo— Disse Otávio, em inglês com sotaque da BBC.
— Eu podia dizer que é porque somos uma síntese da humanidade, porque no Brasil estão representados povos de todas as partes do planeta, porque há mais diversidade genética e cultural em um bairro de São Paulo do que em todo o resto do planeta…
— Não temos uma comunidade inuit… — Disse Otávio, pensativo, dando uma de advogado do diabo.
— Teremos sim, lá por 2197— Repondeu Alfredo, olhando para Karen McGraath. — Mas não é por isso que eles nos escolheram. Você já ouviu falar em gambiarra? Já tentou sobreviver com salário mínimo? Sabe quem foi Arakém, O Showman? Já comeu um churrasco de verdade, não aqueles bifezinhos ridículos que vocês fazem em grelhas a gás? Sabe fazer percussão como uma caixinha de fósforo? E pão de queijo? Já comeu? Hein? Hein?
— Isso é a coisa mais sem sentido que eu já ouvi. — Respondeu ela, com um olhar azedo.
— Dona, se o início do século XXXII não está bom pra você. Posso deixá-la na Europa do século XIV. Você vai adorar a peste negra… — Disse Alfredo, bem sério.
Ela engoliu em seco.
— Pois bem. De nada. Esse planeta é um pequeno entreposto comercial. Mas está para crescer muito. Tem certeza de que não quer voltar para a Terra? — Prosseguiu Alfredo.
— Não há nada mais para mim lá. E, convenhamos, levar anos viajando pelo sistema solar, colonizando Marte, o cinturão de asteroides e as luas de Júpiter e Saturno, a passos de tartaruga? Não mesmo. Tenho uma galáxia me esperando. A aventura está aqui. Muito obrigada, Alfredo, por me salvar daquele hospício, mesmo tendo sido o responsável por eu ter ido parar nele, pelo curso intensivo de adaptação ao futuro, e pela carona. Jamais poderei retribuir. — Disse ela, estendendo a mão para cumprimentar Alfredo e Otávio.
— Um dia eu apareço para cobrar o favor— Disse Alfredo.
Fortaleza fantasma, Não-verso, data desconhecida (depois daquela outra data desconhecida).
— Bom, amanhã é sábado, em 1969. No domingo tem almoço lá em casa, o melhor almoço da semana. Foi uma semana interessante— Disse Otávio.
— Interessante? Só isso? — Indagou Alfredo, enquanto lustrava seu “possante” recém-encerado.
— Não quero ser blasé, mas já tivemos semanas mais estranhas. E tu sabes que não precisa encerar nem lustrar a Cremilda, né? Não desde que os teus ex-patrões a fundiram em nível quântico com uma das naves deles, no tempo em que chamavam “Big Bang” de “Small Bang”.
— Isso é relaxante. E tem mais serventia do que jogar truco. A propósito, em algum lugar-momento está na hora daquele programa que tu adoras, aquele do Historic Channel, lembra? Olha ele aí. Computador, solta o VT!
Obedecendo ao comando de Alfredo, a I.A. da Fortaleza Fantasma começou a projetar o programa ali mesmo no hangar, sob a forma de um holograma de realidade total. Não demorou muito para que o apresentador aparecesse, usando aquele exótico corte de cabelo, nitidamente baseado em sua experiência ufológica de infância.
— Obrigado, cara. Valeu, mesmo. Conseguiste acabar com um baita programa de TV. — Disse Otávio com um olhar de reprovação.
— Encara isso numa boa. Ele teria dado um péssimo gandula— Disse Alfredo, se aproximando de uma bancada de ferramentas e enchendo a cuia com mais água quente— Mate? “ALIENS!”, disse o apresentador, sorrindo, e fazendo seu gesto característico, que muito lembrava um pescador mentindo sobre o tamanho do peixe.
[1] O Posadismo é uma variação do trotskismo, que acreditava que a revolução mundial socialista triunfaria no dia em que seres extraterrestres viessem salvar a humanidade de si mesma após (hein?) a eclosão da Terceira Guerra Mundial. Depois, passaram a acreditar na comunicação com golfinhos. Uma mistura de marxismo, Star Trek e Nova Era, mas sem trilha sonora da Enya. Não é piada! Procure no Google…
[2] Sujeito negativista, do contra, corta-barato, estraga-prazeres, que destoa do entusiasmo geral. Possível origem: O boi que não tem um dos cornos (logo, é corneta) e, com alguma frequência, de índole arredia. Traduzido do gauchês.
[3] Finado cinema do bairro Bom Fim, na Avenida Oswaldo Aranha, em Porto Alegre, famoso pelos ciclos de filmes Cult, pelo público nada convencional e, ocasionalmente, pelas goteiras.
[4] Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade