Areias Eternas
por Roberto de Sousa Causo
E nem mais existirá a esperança do trágico…
E no vazio,
em vão apelareis para as grandes catástrofes,
para a vaidade do ranger dos dentes,
para o pavoroso das formas não de todo feitas,
sob o terrível das forças verticais…
Sumirão as espadas suspensas de fios,
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho,
e a Esfinge dormirá nas areias eternas…
—João Guimarães Rosa, “Iniciação”
— 1 —
Jonas Peregrino lia sozinho no alojamento que partilhava com outros cinco cadetes da Academia Militar de Olympus Mons, em Marte. Uma canção tradicional do Mato Grosso, escrita no século XXII, preenchia os aposentos e enchia o coração do moço com saudades de sua terra. Seus colegas haviam saído para algum tempo de interação na cantina principal, mas ele preferira ficar para colocar sua leitura de prazer em dia, depois de repassar com eles alguns pontos das disciplinas de Física, Navegação Espacial e Orbital, e Sistemas Operacionais de Combate.
A leitura favorita de Peregrino era a série de novelas Perry Rhodan Ucronia: A Esfera, e ele já havia lido mais de duzentos episódios. Enquanto lia e ouvia música, havia regulado a iluminação do alojamento para UV, de modo a obter à sua hora diária recomendada para a absorção correta de vitamina D. A intensidade mal dava para bronzear, mas ele se banhava na luz só de cuecas. Também interrompia a leitura para fazer flexões e abdominais, de modo que havia um bocado de suor no seu corpo quando a Cadete Sênior Helena Borguese entrou acompanhado de um homem com a armadura propulsada Kirkincho K-1 das Forças de Superfície e divisas de primeiro sargento.
Peregrino levantou-se com um pulo e assumiu a posição de sentido, sem se importar em vestir a camiseta do uniforme 9.º A. A luz vermelha painel fixo na parede do lado de fora do alojamento informava a qualquer interessado que a iluminação era UV e que havia cadetes seminus lá dentro.
Borguese o mediu de alto a baixo. Em seguida, com dois passos aproximou-se da mesa de estudos de Peregrino e desligou o pequeno aparelho de som, calando a canção da Terra distante. Era uma garota alta e orelhuda, que Peregrino não conhecia bem, já que era aluno do terceiro ano e ela do quarto. Sabia que Borguese estava no topo da sua turma e devia partir em breve no seu primeiro estágio de três Terrameses como alferes em algum vaso de destaque no 1.º Distrito das Forças Espaciais. Além disso — e talvez por causa disso —, Borguese não fazia o menor esforço para esconder que achava o serviço de comando dos alojamentos das turmas inferiores algo abaixo da sua dignidade.
— Aqui está — ela disse, para o sargento ao seu lado. — Segundo os registro da academia, este cadete é o melhor tanto em orientação de campo quanto em COPS.
COPS era a sigla para “Controle Orbital de Progressão em Superfície”. Obviamente, Borguese fazia parte do substancial contingente de cadetes — e de professores, a propósito — que torciam o nariz para esse tipo de coisa dentro das forças espaciais. Afinal, as forças de superfície existiam para isso — operar em planetas e outros corpos celestes. Peregrino entendeu imediatamente por que eles o procuravam. Mesmo assim, e notando que Borguese não se dera ao trabalho de chamá-lo pelo nome, voltou o rosto ostensivamente para o sargento, apertou os olhos para ler o nome “Ramos” em seu peito, e perguntou:
— Qual é a emergência, Sargento Ramos?
Enquanto Borguese bufava, Ramos deu um meio sorriso. Nas dependências da academia ele devia curvar-se à autoridade dos cadetes, de modo que Borguese era a pessoa mais graduada no recinto. Mas, notando como Peregrino a tinha contornado abertamente, Ramos pegou a deixa e entrou no jogo.
— Possibilidade de garimpeiros ilegais na escarpa oriental do vulcão — informou. — Vem uma tempestade de areia das grandes, pr’as próximas horas, e garimpeiros ilegais às vezes usam a cobertura das tempestades pra evitar o sensoriamento orbital. O deslocamento deles pra cá foi detectado antes da chegada da tempestade. Nosso especialista em orientação de campo e COPS está ausente, fazendo um curso em Titã. Precisamos de um reforço apenas nessa área.
— Não sei se isso só justifica — Borguese o interrompeu. — Tem que haver mais alguém na sua companhia capaz para isso.
— A companhia toda foi rodiziada há pouco tempo da Patagônia pra cá — Ramos justificou, quase dando de ombros.
Peregrino, que ainda estava em posição de sentido, assentiu com a cabeça sem perceber. A academia só havia obtido autorização de se instalar na borda sul de Olympus Mons com a condição de agir ativamente para preservar o monumento natural, patrimônio geofísico do Sistema Solar. O vulcão extinto era um de um conjunto de quatro existentes naquela face de Marte, e durante muito tempo fora considerado o mais alto vulcão do sistema, com 25 quilômetros de altura. A datação in loco havia determinado que alguns dos seus derrames de lava ocorreram há 430 milhões de anos, bem adiantado na Era Amazônica Posterior das eras geológicas — ou areológicas — do planeta[1]. Tanta lava, cobrindo uma área de 600 quilômetros, expunha à superfície muito minério — e isso atraía os garimpeiros. A academia e o 1.º DFE/4.º Exército da Latinoamérica mantinham duas companhias de infantaria embarcada e duas de infantaria de superfície, respectivamente, para patrulhar e proteger o monumento natural — e garantir a segurança da própria AMOM.
— Não é uma convocação — Ramos acrescentou —, mas solicitação de ajuda. — Ele finalmente deu de ombros, sorriu e disse: — Estamos no meio do fim de semana, calhou da minha companhia, novata em Marte, ser a única de serviço operacional… e a urgência é manifesta.
Peregrino sabia que as duas companhias de infantaria embarcada estavam num exercício internacional em Plutão, em conjunto com forças da Euro-Rússia, a “Operação Dark Light-Years”. Significava que a companhia de Ramos teria de atuar sozinha, pois sua subunidade-irmã permaneceria aquartelada como segurança da academia e como reforço.
— Se a Cadete Sênior Borguese permitir, eu me visto imediatamente e podemos ir. Terei prazer em ajudar.
Em resposta, Borguese foi para junto da porta, virou-se para eles e disse:
— Vocês dois podem se entender como acharem melhor. — Apontou para Peregrino. — Vá direto ao armeiro de serviço para pegar traje e armamento. Eu apoio, seguindo a recomendação da diretoria. Não se esqueça de dar notícia da sua saída ao oficial de dia, e diga a ele para me manter informada. Não demore muito. Tenho mais o que fazer do que te acompanhar você nessa excursão.
— Sim, Cadete Sênior Borguese.
***
Peregrino e Ramos seguiam pelos corredores da AMOM com destino ao arsenal e vestiário. A armadura do sargento rangia baixinho, com as suas passadas largas.
— Você é nativo-brasileiro? — Ramos perguntou.
— Não. Quer dizer… não inteiramente. Mestiço.
— Mas foi criado como indígena? — Ramos insistiu.
Mais um vez, Peregrino hesitou.
— Perto disso. Passei muito tempo da infância e adolescência em aldeias e andando pelos matos com os xavantes do norte do Pantanal Matogrossense. Por que pergunta, sargento?
— Nosso especialista, o Cabo Paulo, é um caiapó. Os melhores especialistas em orientação que já conheci são ou indígenas amazônicos ou mexicanos. E você tem o tom de pele…
Peregrino deu uma boa olhada no sargento. Ele parecia experiente, lá pelo fim da casa dos trinta.
— Imagino que faça sentido. — Então perguntou: — Mas acho que o ideal aqui seria um nativo de Marte, não é mesmo?
— De jeito nenhum, cadete — Ramos disse, com convicção. — Por razões de segurança, a maioria deles cresce nos habitats fechados e nas cidades subterrâneas, e só tem instrução em atividade externa na adolescência. Não desenvolvem na infância os instintos necessários. E temos poucos marcianos em nossa unidade. A maior parte deles logo se envolve com o comércio, a mineração ou nos projetos de adequação ambiental do planeta. E a colônia latina aqui é pequena. Poucas opções.
— Entendo.
Peregrino havia visitado a colônia latina, Nueva Esperanza, umas poucas vezes. O lugar era de fato pequeno. Apinhado. Os habitantes torciam o nariz quando os cadetes invadiam as instalações recreativas. A Zona 1 de Expansão Humana tinha dessas coisas. As primeiras colônias logo alcançaram os seus limites, criaram hábitos arraigados, olhavam demais para o velho berço da humanidade. O grosso do pessoal das Forças Armadas Integradas era fornecida pela Terra e pelas colônias mais recentes instaladas nas Zonas 2 e 3.
— De onde você é, sargento?
— De Huancayo, no Peru — Ramos disse. E emendou: — De quantos exercícios você participou, pra conquistar essa qualificação?
— Os maiores foram seis. Três no primeiro ano, dois no segundo, e um no terceiro. Ano passado, fui o primeiro esclarecedor do grupo de resgate montado às pressas pra socorrer um grupo de turistas alienígenas que sofreu um acidente na caldeira do vulcão. Mas há mais um exercício semestral programado pra daqui a dois Terrameses, envolvendo todo o corpo de alunos. Ei, se a gente conseguir voltar, talvez esta operação me traga mais alguns pontos, hein?
— Nós vamos voltar — Ramos afirmou.
Peregrino assentiu, mas manteve-se em silêncio. Em mais um minuto, estavam no arsenal e no vestiário anexo. Estavam vazios, como era de se esperar no fim de semana. Robôs faxineiro rodavam e aspiravam por ali, quase em silêncio. Peregrino foi direto até a sala do armeiro, localizada na junção dos dois espaços, e bateu na porta.
— Entre! — disse uma voz feminina.
Peregrino fez uma breve careta antes de entrar, torcendo pra que Ramos não a tivesse visto. Era a Tenente Célia Urrutia servindo como oficial armeiro, no meio do fim de semana.
— Cadete Peregrino — ela disse, sentada atrás da escrivaninha modular, e sem dar tempo a ele de se apresentar. — A Cadete Sênior Borguese me informou do caso. E você é o Sargento Bolívar Ramos, da Primeira Companhia do Nono Destacamento da Guarda Especial de Marte. Pelo que entendi do perfil do caso, o cadete vai precisar da armadura de combate leve com provimento completo e equipamento de localização e comunicação, um detonador M6, e a bermuda de interface correspondente à… Espere. — Ela apertou os olhos. — Você está todo suado, cadete. O que é isso! Completamente fora do padrão de higiene para vestir a bermuda de interface. Eu vou ter que reportar isso, e você não vai escapar dos deméritos. Está no terceiro ano! Já devia saber que isso é inaceitável.
Peregrino assumiu a posição de sentido para suportar a bronca. Não disse nada. Podia sentir o desconforto de Ramos ao seu lado. Enfim, o sargento resolveu intervir.
— Há uma certa pressa em jogo, Tenente. Preciso levar o cadete até a minha unidade pra seguirmos até a área de atuação antes que a tempestade se instale. Quando cheguei, pedi pra que o candidato ao elemento de que precisamos fosse alertado antecipadamente, mas pelo que entendi, não é assim que vocês trabalham aqui…
— Exatamente, Sargento Ramos! — Urrutia rosnou, voltando seus olhos escuros e fuzilantes para ele. — Os cadetes sob os cuidados da academia não são notificados de nada, nem mobilizados ou instruídos sem supervisão direta dentro da hierarquia de comando apropriada.
— Eu compreendo perfeitamente — ele respondeu. — Mas a necessidade de partirmos o quanto antes permanece. E toda essa reprimenda só está fazendo o menino suar mais ainda.
Urrutia levantou-se e apoiou as mãos na escrivaninha.
— Você faz parte do corpo docente desta instituição, Sargento Ramos? É um educador disfarçado de soldado de infantaria? Já cursou esta academia em algum outro momento da sua vida, por tempo suficiente para dar palpites sobre como devemos conduzir a instrução e o ensino dos nossos cadetes?
Ramos respirou fundo. Ele não estava em posição de sentido. Apontou com dedo em riste a tela do computador sobre a escrivaninha do armeiro.
— Não sei nada sobre os aspectos educacionais nem sobre a didática deste lugar — disse —, mas me pergunto se o ofício que enviamos menciona a prerrogativa fundacional da AMOM, que implica na defesa da integridade de Olympus Mons. É só por isso que estou alocado aqui em Marte, num anexo da sua academia, e a única razão de eu estar na sua frente agora. Tenho certeza de que o corpo docente, administrativo e discente da academia tem a mesma obrigação precípua que eu e os meus colegas. Mas não suponho que a senhora tenha as habilidades de orientação de campo e controle orbital de progressão em superfície que precisamos pra enfrentar a tempestade de areia lá fora. O rapaz aqui tem.
A tenente e o sargento ficaram se encarando por um, dois, três, quatro segundos…
— Vou precisar de uma carabina de alta energia também, e um ansível TK-setenta e cinco.
Os dois voltaram os olhos para ele.
— O quê? — Urrutia quase balbuciou.
— Carabina de alta energia, ansível portátil TK-setenta e cinco. Se vamos enfrentar garimpeiros ilegais e piratas, quero mais poder de fogo. E com o ansível podemos nos comunicar com a estação internacional não importando o clima, e garantir que pelo menos a nossa posição vai ser acompanhada pelos sensores deles. A previsão é de que essa tempestade de areia em particular vai ser muito intensa e cobrir todo o hemisfério do planeta em que estamos.
Transmissões eletromagnética e registros térmicos podiam ser muito prejudicadas por uma tempestade de areia desse nível. Mas o ansível “atravessava” tudo. Planetas rochosos, gigante gasosos, nebulosas ativas, até estrelas de nêutrons. Na verdade, o seu feixe de dados codificados não pertencia à estrutura física do nosso universo. Peregrino sabia que Urrutia nunca colocaria um aparelho tão caro nas mãos de um cadete do terceiro ano. A tenente começou a cuspir argumentos nesse sentido, enquanto Ramos comentou que o ansível de fato seria útil, e que a própria companhia dele não dispunha de um. Antes que os dois iniciassem mais um bate-boca, Peregrino disse:
— A carabina, então.
— Está bem — Urrutia disse, sentando-se. Seu rosto estava muito vermelho.
***
— Era a carabina de alta energia que você queria o tempo todo?
— Sim, Sargento.
Ramos sorriu. Eles seguiam em um carro elétrico, aberto, rumo ao quartel das tropas de superfície. Peregrino vestia a armadura, tentando ignorar o corpo pegajoso de suor dentro da bermuda de interface e tocando as almofadas de pressão nos membros da armadura.
— E por que, garoto? — Ramos inquiriu. — Só o detonador não basta pra você?
— Basta pra você e a sua tropa?
— Não — o sargento disse, sem hesitar. — Não sabemos que equipamento ou armamento esses caras têm. Pra enfrentar uma tempestade dessa magnitude, eles devem confiar bastante no seu hardware. Provavelmente são gente da Aliança ou da Euro-Rússia, que têm material de primeira. O nosso não chega perto. Então existem riscos muito reais. — Ele fez uma pausa, e então: — Desculpe te enfiar nesta situação.
— Se os garimpeiros têm um equipamento tão bom e vocês tiverem a desvantagem de se perderem na tempestade de areia, a missão se torna inviável.
— Esse foi o nosso raciocínio — Ramos admitiu. — Você tem uma cabeça bem atarraxada no pescoço, rapaz.
— Mas isso não significa que vou poder ajudar vocês de fato. Não há muitas garantias de progressão eficiente no terreno, em condições como essas.
— É claro. Mesmo o Cabo Paulo teria dificuldade.
O carro deteve-se diante de uma lancha de transporte. Um padioleiro esperava do lado de fora.
— Suas armas e equipamento já estão lá dentro, Sargento — ele disse.
— Muito bem, Francisco. Vá na frente. Você também, cadete.
Eles embarcaram. Peregrino seguiu atrás do padioleiro Francisco, sem registrar os rostos dos homens e mulheres já sentados mas ainda sem os capacetes, com o equipamento fixado entre os pés e as carabinas de alta energia presas em suportes ao lado direito de cada um. Foi assim até Ramos lhe indicar um assento livre. Peregrino sentou-se em silêncio, e deu um jeito no seu próprio material. Ramos sentou-se ao seu lado. A lancha pairava acima do piso do hangar, rumo à larga eclusa que dava para o exterior marciano. Enquanto o grupo esperava a comporta externa abrir, Peregrino colocou o capacete, que começou a receber o feed de dados operacionais. Ele jogou briefing, croquis e dados de sensoriamento no head-up display no visor do seu capacete.
A lancha se atirou para fora da eclusa. No mesmo instante, Peregrino sentiu uma pequena vertigem que não se relacionava com o movimento. A academia era uma instalação ampla mas compacta, não diferente de um grande vaso espacial como um cruzador ou uma nave de transporte — completo com sua fonte de energia autônoma e gravidade artificial de um gravo padrão. Qualquer um que se encontrasse fora dela estaria submetido à gravidade marciana, de pouco mais que um terço da gravidade da Terra.
Não havia vigias dando para a paisagem marciana, nesta seção do veículo. Mas uma tela de vídeo era reproduzida no HUD. A imagem era de alta definição, o que surpreendeu Peregrino. A lancha ascendia, mas o grande paredão da borda sul do vulcão em escudo ainda preenchia quase a metade da tela. O céu já tinha uma tintura rósea no horizonte, de poeira flutuante na atmosfera rarefeita. Peregrino se perguntou se Fobos estaria visível em outro ângulo. A lua maior percorria o céu três vezes durante o dia marciano — chamado “sol” — de 24 Terrahoras e 39 minutos. Ver a sua forma distante passando velozmente era um dos prazeres do cadete, que frequentava o observatório da AMOM sempre que possível.
— Tudo bem com você, garoto?
— Sim, sargento… Mas há uma coisa.
Não teve tempo de elaborar, porém. Uma mulher com a divisa de segundo tenente na armadura veio caminhando da proa da lancha e parou diante dele. Peregrino desligou o HUD e retirou o capacete. A oficial tinha traços incomuns, de faces largas, nariz chato, queixo estreito e boca pequena. Os olhos eram muito claros no rosto latino.
— Fique sentado — ela disse. — Sou a Tenente Carrero, comando a operação. Você é o cadete que o Sargento Ramos foi buscar. A leitura dos sistemas biométricos enviados pela sua armadura ao meu console está intermitente.
— É efeito do suor na bermuda de interface. Eu estava me exercitando quando o Sargento Ramos me procurou. O assunto era urgente, não tive tempo de tomar um banho.
— O assunto é urgente — ela disse. — Nos fundos há um nicho de enfermagem. Você vai encontrar uma toalha lá, cadete, e líquido higienizador pra passar nela. Temos dezoito minutos antes de chegarmos ao objetivo.
— Sim, Tenente. Mas eu gostaria de falar rapidamente com a senhora, se for possível?
— Assunto? — ela perguntou, torcendo a boca.
— O ponto em que se imagina que os garimpeiros estarão.
A mais breve hesitação da parte de Carrero. E então:
— Eu te acompanho. Vamos.
Peregrino notou que a Tenente Carrero tinha os ombros largos e os braços grossos de uma fisiculturista, e mesmo a Kirkincho não conseguia esconder os movimentos dos glúteos grandes e musculosos. Movia-se muito bem, na baixa gravidade. Talvez fosse uma ciberaumentada — faria mais sentido enviar uma segundo tenente que fosse uma ciborgue, para comandar uma missão importante como essa. Assim que chegaram ao nicho, ela disse:
— Você sabe o que fazer, então faça.
Sem registrar verbalmente a ordem, Peregrino encontrou a toalha e o detergente corporal. Começou a despir a armadura. A bermuda de interface ele baixou até a cintura — a sonda líquida da bermuda já estava na uretra e no ânus. Lembrou-se do olhar agudo de Helena Borguese, medindo-o de alto a baixo ao encontrá-lo só de cuecas no alojamento. Sentiu-se corar e deu as costas à oficial, virando o corpo apenas para que ela pudesse ver o perfil do seu rosto. Enquanto esfregava a toalha molhada no corpo, disse:
— Pelo que entendi do perfil da missão, vamos interceptar um veículo de superfície que pretende usar a tempestade como cobertura pr’a garimpagem clandestina dentro da área protegida de Olympus Mons. É um movimento coordenado com a progressão da tempestade…
— Como sabe que é um veículo de superfície? — Carrero o interrompeu.
— Se fosse um flutuador anti-G, ele seria passível de detecção apesar de qualquer condição de clima.
Marte havia sido mapeado em termos gravitacionais por sondas e satélites artificiais e com frequentes atualizações desde fins do século XX, com maior precisão no início do XXI. Com base nos dados mais minuciosos, sensores gravíticos orbitais podiam identificar qualquer variação negativa — como a marcada pelos geradores antigravitacionais dos flutuadores. Ainda mais nas imediações de Olympus Mons, o ponto de maior gravidade da superfície do planeta.
— É isso mesmo — Carrero concordou.
— Imagino que com base na última localização desse veículo ou veículos…
— Veículos — a mulher esclareceu. — Três.
— Três veículos. Com base na última localização deles e no seu trajeto conhecido, se extrapolou que o destino devia ser os depósitos conhecidos de ouro e diamante localizados no limite oriental do escudo, na mesma latitude dos Sulci Gordii. Além disso, eles estariam muito próximos da área mais delicada do escudo, onde a Olympus Rupes Sudeste é interrompida. — O vulcão era um dos pontos de Marte que detinham água subterrânea, mantida no estado líquido por fontes geotérmicas, e formas de vida nativas existindo nos depósitos de água. Esses micro-organismos precisavam ser protegidos a todo custo, e as muitas passagens encrustadas na vasta rampa que se derramava do alto de Olympus Mons até o planalto de Tharsis eram um convite para que os veículos alcançassem a parte superior do vulcão. Peregrino completou: — Foi o que entendi dos dados da missão.
— Nota dez até aqui, cadete — Carrero disse. — Prossiga.
— O mercado de ouro e diamantes na Zona Um é regulado internacionalmente e dirigido à mineração de asteroides, onde esses e outros elementos são abundantes. O mercado clandestino pra essas coisas foi abafado pela regulação. Então é contraproducente uma aventura como esta, ainda mais envolvendo três veículos.
Peregrino voltou a cobrir o tronco com a bermuda de interface, e procurou rapidamente onde no nicho de enfermaria ele podia dispensar a toalha. Puxou uma tampa basculante da parede, e a jogou lá dentro. Virou-se para a oficial e começou a vestir de novo a armadura.
— Existe um item de mercado negro que ainda não caducou — disse —, o de lítio natural para a obtenção de lítio-seis, que pode ser usado na produção de armas nucleares. Elas são proibidas na Zona Um e a mineração do lítio é mais regulada ainda, mas vi em algum lugar que as autoridades da Aliança tinham desbaratado uma célula da organização Freedom Frontier em Bradbury e encontrado dados sobre a obtenção de lítio-seis nos computadores e tablets deles.
“Há uma fonte de lítio natural bastante conhecida nas proximidades da escarpa oriental de Olympus Mons, depositada no planeta pelo choque de um meteoro há um monte de milhões de anos, e coberta superficialmente por um dos derrames de lava do vulcão. É uma cratera exumada[2] que fica só a trinta e cinco quilômetros, mais ou menos, ao sul de onde vocês acham que os garimpeiros se dirigem.”
A Freedom Frontier havia surgido na colônia da Aliança Transatlântico Pacífico em Bradbury’s Hope, e era uma organização militante dedicada a promover condições para a abertura total de Marte à iniciativa privada e à indústria de transformação. Para eles, a colonização do planeta ainda não havia criado a sociedade libertariana que eles aspiravam por causa das regulamentações protetoras do legado natural e histórico do planeta. A obtenção de artefatos nucleares proibidos na Zona 1 por todos os blocos políticos seria um passo além na radicalização da Freedom Frontier, que já vinha sendo apontada como grupo terrorista por algumas autoridades.
— Como é que você sabe dessas coisas, cadete? — Carrero perguntou.
— Vendo o noticiário local? A cratera exumada com a fonte de lítio eu conheço do meu trabalho de Areografia[3] do primeiro ano.
Carrero o fitou muda por um instante, os olhos claros percorrendo o rosto dele. Então sorriu com ironia.
— Você tem tempo pra isso — disse —, com todo o estudo das disciplinas acadêmicas, das disciplinas militares, da preparação física e da paquera em cima das suas colegas na cantina da academia?
— Eu posso ter pulado algumas dessas coisas — ele respondeu, sem olhar para ela, ocupado em se enfiar na armadura — pra achar tempo pra me manter a par dos assuntos correntes.
Não voltou a olhar para a Tenente Carrero ou a se dirigir a ela. Sabia que a oficial não o levaria a sério, mesmo que insistisse. Mas dissera o que achava que precisava ser dito. Depois de fechar a armadura, passou calado por ela e retornou ao seu assento ao lado do Sargento Ramos.
Depois que Carrero passou com passos duros pelos dois rumo à cabine de comando na proa, Ramos cutucou Peregrino com o cotovelo.
— Deu sorte com ela? — ele perguntou.
— Nem de longe.
— 2 —
A tela repetidora no HUD de Peregrino mostrava um gigantesco redemoinho de sílica eletrificada pelo veloz atrito das suas partículas, estendendo-se do solo, por quase cem metros, para o céu, com relâmpagos explodindo no seu interior. Tipo a Mãe de Todos os Sacis-Pererês abrindo caminho para a Mãe de Todas as Tempestades de Areia. Arrancava toneladas de areia da superfície de Marte e as colocava no ar, apagando a topografia de alguns pontos para desenhar outras mais adiante. Atrás dele, outros redemoinhos menores se formavam, seguidos de perto pelo paredão vasto, de um quilômetro de altura se agigantando ainda além do horizonte, escuro, tremulante e interminável da tempestade. Tempestades globais ocorriam durante o outono e inverno marcianos, e esta tinha a previsão de durar mais de duas semanas, boa parte sobre o hemisfério ocidental e suas regiões de Tharsis Montes e Amazonia Planitia — separadas justamente pelo escudo e adjacências de Olympus Mons. Mas a baixa gravidade e a baixa densidade da atmosfera de Marte, ainda mínima apesar de dois séculos de esforços de ajuste ambiental planetário, transformavam toda essa pirotecnia meteorológica em eventos pouco destrutivos se comparados aos furacões da Terra, menos exibicionistas porém mais poderosos.
Olympus Mons era tão alto — 27 quilômetros acima da altura média da superfície de Marte —, que a parte superior do vulcão com a caldeira principal se atirava no espaço acima da atmosfera, e estaria eternamente protegido das tempestades. O que preocupava Peregrino, porém, era que eles poderiam ter chegado tarde demais para surpreender os garimpeiros antes que a tempestade se instalasse.
A lancha sobrevoou a área por alguns minutos. Um par de drones — claramente descartáveis — foi lançado. Então, sem aviso, a imagem na tela sofreu uma violenta guinada e o terreno abaixo começou a correr em velocidade dobrada. Ao lado de Peregrino, o Sargento Ramos se mexeu irrequieto, mesmo preso pelo cinto de segurança de cinto pontos.
Passados mais alguns minutos, ficou claro que abandonavam a área. Os dados do feed do comando informaram que voltavam a voar para o sul. Peregrino não soube o que pensar. A comandante da operação teria reconsiderado a sua hipótese?
— Cadete Peregrino — ouviu nos headphones do seu capacete. A voz da Tenente Carrero. — Apresente-se na cabine de comando.
Ele se desvencilhou do cinto e obedeceu à ordem. A cabine de comando era também a de pilotagem. Carrero sentava-se num assento mais próximo da escotilha que a separava do compartimento em que os soldados se sentavam, do que do console do piloto. Ao seu lado havia um terceiro sargento, sentado com um tablet tático no colo. O olhar de Peregrino fugiu para as amplas vigias frontais. As escarpas da borda oriental do vulcão assomavam à direita agora — como um continente inteiro atirado sobre a areia, para quebrar a perspectiva ferindo o horizonte encurtado de Marte. Ele entendeu que a tempestade já havia se chocado contra elas, ao sul. Em mais alguns minutos, estariam dentro da nuvem de poeira aerotransportada. Pelo jeito, os garimpeiros ilegais tinham sincronizado os seus movimentos com perfeição… Deviam ter ajuda técnica de primeiro nível, com acesso a interpretação de dados meteorológicos.
— Chamei-o porque quero que saiba que repassei a sua hipótese ao controle operacional — Carrero disse. — Ela foi ignorada na primeira avaliação. Mas os analistas táticos fizeram uma segunda, a partir dos últimos dados orbitais e da nossa própria observação direta ao chegarmos no objetivo. Até um contato com as autoridades da Aliança em Bradbury’s Hope eles fizeram. Estamos rumando para o local que você indicou, e que já constava dos nossos bancos de dados como um ponto sensível do complexo do vulcão. Vou atualizar o meu pessoal dentro de instantes. E você vai passar a receber o feed tático direto do controle operacional, assim como eu. — Ela sorriu, com um brilho divertido olhos. — Não partilhe nada com ninguém até segunda ordem, e use com sabedoria.
— Sim, Tenente.
***
A lancha alcançou o novo objetivo com uma parábola balística, subindo alto o bastante acima da tempestade de areia para fazer um esforço desimpedido de reconhecimento com os sensores de bordo, triangulados com os satélites e estações orbitais. Os resultados foram inconclusivos quanto à localização precisa dos três rovers dos garimpeiros. Mas positiva quanto a interferência eletromagnética. Os sujeitos empregavam emissões eletromagnéticas ampliadas e difundidas pelo conteúdo mineral aerotransportado, para embaçar eficientemente a sua detecção. Tanto atrito na superfície também mascarava a sua assinatura térmica — outro motivo para os veículos serem rovers e não flutuadores.
O aviso de preparar para desembarque expulsou suas reflexões. Peregrino levantou-se com o Sargento Ramos, colocou o capacete e iniciou a pressurização da armadura. Seus ouvidos estalaram. Ele apanhou o seu equipamento e a carabina de alta energia. Ramos indicou a escotilha de bombordo da lancha, e os dois foram para o começo da fila. No headphone do capacete, a Tenente Carrero ordenou o pouso e a descompressão do espaço interno, e iniciou a contagem regressiva para o desembarque. Os homens e mulheres da infantaria de superfície calçaram as sapatas de areia e empunharam as armas. Peregrino aproveitou esse minuto para conferir as frequências de comunicação que o Sargento Ramos lhe tinha passado.
A tempestade de areia deu-lhes as boas vindas, quando saltaram. Não era a primeira desse tipo que Peregrino enfrentava. Em um segundo, seus ouvidos registraram o crepitar da areia oxidada e partículas de minerais vulcânicos batendo contra o exterior do capacete. O sensor acoplado a uma das antenas que se projetavam discretamente da mochila às suas costas registrou a velocidade do vento em 109 km/h. Com esse dado, ele regulou os sistemas do capacete para emitir uma onda compensadora, e o crepitar diminuiu consideravelmente. Não teve dificuldade em manter-se em pé, mesmo com essa velocidade do vento. Para se locomover, também não precisou acionar o modo autopropulsado da armadura.
Quando saltaram, os soldados deslizaram pela areia vermelha de Marte por cerca de vinte metros da lancha. Peregrino acompanhou-os com facilidade. Sob o comando de Ramos, eles detiveram a marcha e puseram um joelho na areia. Peregrino olhou para trás por cima do ombro direito. Viu o vulto escuro da comprida lancha de transporte, as luzes de navegação acesas, levantar voo silenciosamente no seu campo de repulsão anti-G, criando um vácuo momentâneo entre as cortinas de areia sopradas pela tempestade. Agitados por alguma ionização residual dos reatores da lancha, raios explodiram acima das cabeças da tropa, marcando seus ombros de luz e a areia marciana com suas sombras. Um arco voltaico formou-se entre um ponto elevado da tempestade e um dos soldados ajoelhados na areia, mas o isolamento da Kirkincho K-1 funcionou com perfeição. Peregrino acionou os sistemas de posicionamento do computador portátil que trazia consigo da AMOM. Os dados meteorológicos e táticos começaram a chegar.
— Luzes de orientação individuais! Luzes de orientação individuais! — Ramos ordenou. A sua voz saía abafada pelo crepitar interno do capacete. — A lancha vai fazer um reconhecimento em voo automático de trezentos e sessenta graus e retornar a este mesmo ponto. — Gesticulava com um indicador para baixo. — Aqui é o ponto de encontro!
Peregrino acionou a luz de orientação do seu traje. No voo automático de 360°, o piloto-automático faria o aparelho retornar ao ponto de partida não importando as condições climáticas. O pessoal em terra não teria a mesma facilidade, e Peregrino olhou em torno em busca de elementos de referência visual. Não confiaria nos dados fragmentados que conseguiam chegar ao seu computador.
Ramos aproximou-se dele, acompanhado do vulto alto de um homem na sua Kirkincho. Todos eram como bombeiros vagando em meio à fumaça castanha de um grande incêndio. Se não contassem com a luz do dia marciano, a visibilidade no meio da tempestade de areia seria igual a zero.
— Cadete Peregrino, este é o Cabo Gamache. Ele vai ficar com você o tempo todo. Não se afaste dele. — Peregrino e Gamache estavam no grupo de segurança, enquanto Ramos ia comandar o grupo de reconhecimento e contato. — Boa sorte, garoto!
— Obrigado, Sargento.
Depois que Ramos, Gamache deu um encontrão em Peregrino e disse:
— Venha, bebezinho.
***
Peregrino e o grupo de segurança marcharam por mais de uma hora, às vezes caminhando de fato, às vezes deslizando sobre dunas e camadas de areia compactada, com as sapatas de areia fixas em suas botas. O seu corpo logo se cobriu de suor novamente, apesar da refrigeração da armadura, mas ele sabia que a bermuda de interface havia feito ao ajuste do sistema biométrico com a pele seca e não se desviava mais dos parâmetros.
O Cabo Gamache não escondia o seu desgosto por servir de babá ao cadete. Peregrino se concentrava no trabalho de orientação no terreno e de COPS. Os sinais vindos de órbita eram intermitentes, fragmentados e pouco confiáveis. Instinto e conhecimento prévio do terreno funcionavam melhor. Vez ou outra, Ramos se aproximava para conferir com ele se estavam no rumo certo ou se desvivam-se do seu destino. Os grupos de segurança e de reconhecimento se deslocavam muito próximos um do outro, para não perderem contato visual. Peregrino recorria mais à memória para definir onde estavam, a partir dos poucos elementos visuais e táteis de que dispunha. E foi pelo raspar das sapatas em pedra e não na areia que ele soube que estavam sobre a borda da cratera exumada.
Ele se moveu lateralmente algumas vezes, sendo acompanhado pelos palavrões de Gamache.
— Por que está dançando de um lado pr’o outro, moleque?
— Sargento Ramos — Peregrino chamou seguidamente, no canal correspondente. — Cadete Peregrino aqui. Estamos no objetivo.
Ramos aproximou-se, para melhor comunicação entre os dois. Ambos ignoraram Gamache.
— Tem certeza, Cadete? — Ramos perguntou.
— A cratera exumada com os depósitos de lítio tem borda do tipo muralha denteada. Nós estamos bem em cima desse terreno em que a rocha fundida no impacto aflora na areia como linhas espaçadas. — Fora justamente o vento canalizado pelo contato com a escarpa oriental do vulcão que havia revelado aos poucos a cratera meteórica. — A maior parte do lítio está depositada no fundo da cratera, entre quinhentos e oitocentos metros daqui da borda. Supondo que os veículos dos garimpeiros já estejam posicionados, é mais lá dentro que o senhor deve encontrá-los.
— Muito bem, garoto.
Ramos então dividiu o grupo de segurança em dois segmentos, com um deles seguindo a borda da cratera pela esquerda, e o outro pela direita. Se o grupo de reconhecimento fizesse contato com os garimpeiros, eles deveriam cerrar sobre ele como reforço. Pulsos de rádio de alta intensidade seriam emitidos mais tarde, para marcar a posição de Ramos.
Peregrino e Gamache ficaram no segmento que iria pela esquerda. O cabo passou a comandar esse segmento. Eles avançavam sempre tendo a borda da cratera sob os seus pés, para garantir a coordenação radial entre os dois braços do grupo de segurança.
Algo incomodava Peregrino. Ele queria estar com Ramos e o grupo de contato, para confrontar os garimpeiros ilegais. Mais do que isso, porém, incomodava-o o modo como adversário havia planejado com tanta eficiência a reunião dos seus recursos e todos os passos até ali, sincronizando seu avanço com o da tempestade, fintando a intenção de abordar os depósitos minerais mais ao norte, dificultando a sua detecção com IEM. Uma eficiência quase militar.
As sapatas em suas botas detectaram algo estranho sob seus pés. Peregrino pediu a Gamache que detivesse o deslocamento, e curvou-se. Deu as costas para o interior da cratera, e acendeu a lanterna embutida no peito da sua Kirkincho K-1. Quase no mesmo instante, sentiu um tranco que o jogou de lado contra o solo.
— Apague isso e se levante! — ouviu. A voz de Gamache.
Ele obedeceu, mas só parcialmente. Não se levantou, mas, acocorado, apontou o que havia encontrado.
— Veja, Cabo. São rastros de pneumáticos com ranhuras de tração. Recentes. A areia da tempestade não teve tempo de cobrir.
Nesse instante, um relâmpago revelou a extensão dos rastros.
— E daí? — Gamache rosnou. — Os veículos passaram por aqui quando chegaram…
— Não! Eles estão aqui há mais tempo. O vento já teria apagado as marcas. E a orientação das ranhuras indica que estavam saindo da cratera. Um veículo só, daqueles três. Foi ganhar o terreno mais aberto, à nossa esquerda, pra um deslocamento mais rápido. Está indo na direção de onde viemos, pra onde a lancha está pousada.
— Você não pode dizer tudo isso só por essas marcas no chão.
— Cabo Gamache, a lancha pode estar em perigo. Pode ter sido detectada quando fez o sobrevoo! Eles deduziram a manobra automática de trezentos e sessenta graus, e um dos veículos foi enviado pra fazer contato hostil.
Gamache riu.
— Garimpeiros contra uma lancha de transporte — zombou da ideia. — O que você está querendo aprontar, moleque? Quer ser o herói da operação? Estamos perdendo tempo, e temos as nossas ordens. De pé!
Gamache puxou Peregrino pelo braço até levantá-lo, e o empurrou para que se juntasse aos outros.
— Você poderia me enviar até o ponto de encontro com mais um elemento do grupo, Cabo. Só por garantia.
— Cale a boca! — Gamache ordenou. — Você não dá ordens aqui, moleque.
— 3 —
Peregrino esperou que o irritado Gamache se afastasse um pouco dele. O cabo não parecia ter a menor disposição para obedecer ao comando de Ramos de não sair do seu lado. Tinha outras preocupações, agora que comandava um dos segmentos do grupo de segurança. Devagar, Peregrino afastou-se lateralmente dos outros, depois deixou que eles se adiantassem mais, e então apagou a luz de orientação da armadura. Deu meia-volta.
A sua corrida até o ponto de encontro foi acelerada. Usou o modo autopropulsado da Kirkincho para cobrir o terreno alternando saltos cegos com um deslizar derrapante, mais rápido e vigoroso das sapatas. Mantinha a trilha retilínea do veículo sobre rodas como referência.
Quando estava longe o bastante e certo de que não era seguido, fez uma comunicação dirigida a Ramos, na frequência exclusiva do sargento. Informou o que fazia, sem mencionar o Cabo Gamache. De início, não obteve resposta. O canal era dominado pela estática. Repetiu a mensagem várias vezes. Apenas uma vez, ouviu a voz de Ramos, entrecortada e chiante:
— Cadete Pe… tzk… no… tzzzk.
Depois disso, ele concentrou-se no canal do comando na lancha. Informou a Tenente Carrero de que um dos veículos rumava para ela. Repetia a mensagem seguidamente. Não recebeu o menor chiado ou estalido em resposta. Ficou claro para ele que o veículo abafava as comunicações com o seu equipamento de IEM. Torceu para que seus tripulantes não tivessem interceptado as suas mensagens para Carrero.
O Cabo Gamache podia supor que os garimpeiros não eram páreo para o aparelho de transporte, mas era uma lancha desarmada, modelo Moura-Argel T-11 despreparada para o confronto se não decolasse imediatamente ou se não tivesse um grupo de soldados para defendê-la. Ele forçou a memória para se lembrar de quem teria ficado com Carrero no veículo. O piloto e aquele terceiro sargento, talvez mais um soldado…
Peregrino refletiu sobre a Freedom Frontier. “Muita água já inundou estes campos” como a mãe dele costumava dizer, a partir da visão das cheias do Pantanal. A água vinha e virava tudo, era a marca da mudança. Mas tudo também persistia ali, esperando apenas a cheia retroceder — a vegetação rasteira, a areia no fundo. Depois das catástrofes ecológicas que a Terra sofreu no século XXI, e depois de todos os contatos com civilizações alienígenas demonstrarem a falácia das antigas ideias da primazia humana sobre a Criação, parecia errado que conceitos de liberdade econômica e individual pudessem se sobrepor aos de preservação e equilíbrio. Mas era isso: todos os vícios, todas as ideias errôneas e limitadas, todos os hábitos desastrosos ainda estavam sob as águas da mudança, esperando a chance de retornar fosse nos campos da economia e da política, fosse nos da religião ou da cultura e dos costumes.
Pensou então sobre as formas de vida extremófilas vivendo nos subterrâneos de Olympus Mons, onde a pressão e o calor geotérmico criavam as condições para a água líquida e para o emprego de enxofre e outros elementos associados a vulcanismo, na geração da energia de que necessitavam. Viviam imutáveis ali desde o Hesperiano Posterior, há bilhões de anos… Bilhões de anos sem saber que precisavam ser protegidos de abstrações criadas por seres mais complexos, vindos de um outro planeta que eles já havia agredido e comprometido quase a um ponto irrecuperável.
Peregrino deteve o seu avanço. Havia algo adiante. Relâmpagos distantes delinearam uma sombra de forma artificial, surgindo indistinta por entre as cortinas de poeira sopradas pela tempestade. E luzes, ele via agora. Avançou mais um pouco. Eram luzes de navegação, fixas, claras, brilhando amareladas na poeira.
A partir desse ponto, Peregrino praticamente rastejou na direção do veículo. Tinha a carabina de alta energia nas mãos. Aos poucos, distinguiu mais do que os três pares de rodas que eram a norma no planeta sem estradas, para galgar dunas, trincheiras e rochas espalhadas no caminho. Era um veículo enorme, de dimensões proibidas em Marte.
Viu também a uma grande estrutura montada no alto, meio circular, meio abaulada. Seu revestimento no topo balançava com a ventania. Talvez fosse feito de algum material que absorvia o radar do sensoriamento remoto ou aéreo, como costumava acontecer com a superfície arenosa de Marte… E as luzes claras acesas… Neste ponto, eles não se importavam com a furtividade. Queriam ser vistos. A lancha devia estar perto, talvez estivessem se comunicando.
Aproximou-se mais. Olhou para além do veículo, buscando o vulto alongado da lancha de transporte. A tempestade era uma fantasmagoria de formas avermelhadas, ocres e cinzentas no alto, onde o sol brilhava quase a pino. Nesse instante, Peregrino viu um novo brilho, intenso, ritmado, rasgar a nebulosidade da tormenta. Adiante dele, uma sucessão de explosões rubro-amareladas colorindo as cortinas de poeira com tons que os relâmpagos eletrostáticos não produziam. Sua visada traçou uma linha entre a posição dessa rajada de luzes, e o veículo sobre rodas. Notou então os pares de rastros na areia.
Dois veículos menores. Baixados do veículo maior.
Sem hesitar mais, Peregrino mudou a força de autopropulsão da sua armadura e saltou uma, duas, três vezes cobrindo a distância em pulos de seis ou sete metros de extensão, pousando com os sistemas amortecedores das botas e dos joelhos da Kirkincho absorvendo a maior parte do impacto. Passou pelo veículo sem se importar se seria observado pelos tripulantes.
No quarto pouso, passou a correr e não saltar. A poeira abriu-se momentaneamente para revelar os dois veículos menores, parados lado a lado. Quadriciclos abertos, para todo terreno, com um bagageiro grande e algo montado lateralmente neles.
Com a carabina enristada e o seletor marcando o tiro anticarro, Peregrino avançou até reconhecer três pessoas em pé ao lado deles. Logo entendeu: eram dois condutores e um artilheiro-municiador. O veículo mais distante, à direita, disparava uma nova salva de foguetes. Perturbada por eles, a dinâmica elétrica da tempestade produziu uma rede de relâmpagos unindo inofensivamente todas as figuras na cena.
Peregrino atirou no segundo veículo primeiro.
O dedo no gatilho produziu um laser marcador verde, mal visível por entre as partículas sopradas pelo vento. O puxar do gatilho transformou esse raio em um feixe de energia brilhante, que mandou o veículo pelos ares.
Os foguetes que estavam sendo lançados ricochetearam no solo levantando as próprias nuvens amareladas de poeira.
O segundo disparo atingiu o veículo mais próximo. A explosão foi discreta — não havia explosivos nos seu lançadores, mas a corcoveada que o quadriciclo deu jogou motorista e o municiador longe. Peregrino aproximou-se de um deles, iluminando-o com a lanterna da armadura. O homem também vestia um traje blindado, aparentemente sem sistema multiplicador de força. Estava caído de costas e parecia atordoado. Peregrino não viu armas manuais.
Voltou a carabina para trás, mirando o vulto escuro de faróis e luzes de navegação acesas. Talvez o seu objetivo fosse justamente assinalar sua posição para os atiradores. Peregrino disparou seguidamente, até que as luzes se apagassem. A carabina vibrava em suas mãos. Os faróis recuaram, antes de se apagarem. Ele tinha certeza de que havia atingido o veículo. Disparou até descarregar o magazine de energia.
Saltou para longe, movendo-se na direção da lancha. No segundo pouso, ajoelhou-se e selecionou o canal do comando.
— Cadete Peregrino aqui — disse, enquanto recarregava a carabina. — Comando, responda!
— Cadete? — ouviu. A voz de Carrero. Claramente, quando ele atingiu o veículo maior, parte da interferência eletromagnética sobre as comunicações caíra. — Cadete, onde você está?
— A poucos metros de vocês. Estou me aproximando com a lanterna da armadura acesa. Estou sozinho. Não atirem em mim. Tenente Carrero, confirme.
Depois de um segundo de hesitação:
— Você se aproxima sozinho, lanterna da armadura acesa. Não vamos atirar em você, não se preocupe.
— Você está bem, Tenente? — Ele levantou-se e partiu, deslizando pela areia. Só então lembrou-se de acionar o escudo de energia da Kirkincho. — Quem está com você?
— O piloto Ferreira e o Sargento Margulis. Estamos todos bem. Os disparos atingiram a popa e a meia nau da lancha. Ferreira ejetou a cabine, e nós rolamos pra longe. Perdemos a antena principal com isso… Margulis machucou a cabeça quando a cabine rolou, mas está bem. Estamos no exterior, protegidos atrás da cabine. Como é que você está sozinho, e qual é o status dos agressores?
— Eram dois quadriciclos com lançadores de foguetes improvisados, três operadores. Os quadriciclos estão destruídos, o veículo principal avariado e recuando. Ele conduziu o ataque sozinho. Os outros dois devem estar na cratera.
— Eu não entendo…
— Estou me aproximando da cabine, não atirem.
Ele já superava o vulto destroçado da fuselagem da lancha de transporte. Pelo estrago, a carga explosiva dos foguetes não eram muito poderosa, mas os impactos múltiplos haviam inutilizado a nave.
— Temos o visual da sua lanterna — Carrero disse. — É claro que não vamos atirar em você! Pare de dizer isso.
Dentro do capacete, Peregrino sorriu ferozmente. Logo ele enxergava o vulto robusto da Tenente Carrero, também com as luzes da sua Kirkincho acesas. Ele acenou, e ela levantou a mão direita em resposta. Um gesto quase tímido. Peregrino chegou junto a ela e disse:
— É bom formarem uma linha pra avançar até a posição dos veículos lançadores. Há três sujeitos lá, pra serem feitos prisioneiros. Eu vou na frente.
— Está bem — ela disse. E em seguida: — Mas não são só eles que vão ter que dar explicações, Cadete.
— Sim, Tenente.
Quando o piloto e o sargento se uniram a ela, Peregrino lhes deu as costas e se pôs em movimento.
— Nunca fiquei tão feliz em ver alguém… — a voz murmurada de Carrero soou em seus headphones.
Ele abriu mais um sorriso.
— 4 —
O Sargento Ramos se aproximou de Peregrino acompanhado do Cabo Gamache.
— O garoto vermelho do Planeta Vermelho…
— Sargento Ramos.
— Bom saber que você não se perdeu completamente — Ramos ironizou. — Enviamos um grupo à sua procura. O que está fazendo aqui? Eu não entendi nada da sua mensagem de quando se afastou…
— Estou obedecendo à ordem da Tenente Carrero de conduzir o seu pessoal até o ponto de encontro. — Tudo o que ele havia comunicado enquanto vindo do grupamento na cratera exumada foi que estava se aproximando com uma mensagem da oficial comandante. Ele se absteve de corrigir Ramos quanto a sua suposição de que ele tivesse “se perdido”. — Tenho uma gravação dela pr’a você. Pronto pra receber a transmissão?
— Eu não sabia que você era bom assim em obedecer ordens. Espere um pouco aí — ele disse, mexendo nos controles de comunicação, e entendo a mão para apanhar o plugue com o cabo que o ligaria à armadura de Peregrino. E então: — Por que não vai direto ao assunto e conta qual é o conteúdo da mensagem?
— Não sei qual é. A Tenente Carrero baixou a mensagem direto na opção de saída do protocolo de transmissão do meu comunicador.
— Está bem. Transmita, então.
Ramos ouviu tudo por um bom tempo. A mensagem devia ser grande. A certa altura, ele deixou de olhar para Peregrino para dirigir os olhos a Gamache.
No rendez-vous, os três prisioneiros feitos por Carrero tinham sido conduzidos até a cabine ejetada da lancha, com os punhos presos por algemas flexíveis. Os três mancavam, e dois deles tiveram microvazamentos em suas armaduras leves, causados por estilhaços. Precisaram receber reparos com seladores. Por sorte seus trajes não haviam sofrido uma descompressão total. Um dos motoristas de quadriciclo era uma mulher. Quando foi detida, tentava cambalear para longe dos destroços do seu veículo. Carrero colocara Ferreira e Margulis para vigiá-los, e ela e Peregrino seguiram os rastros do veículo de superfície, registrando os restos de metal caídos na areia — inclusive parte do eixo de tração do conjunto dianteiro, resultantes dos disparos anticarro.
— Esse não vai longe — Carrero havia sentenciado.
Na volta, ela exigiu um relatório completo. Por que ele havia retornado sozinho? A contragosto, Peregrino foi forçado a narrar como tinha contornado o Cabo Gamache.
Carrero reagira com silêncio, e agora ficava claro a ele que ela não fora tão lacônica na mensagem dirigida ao Sargento Ramos.
— Gamache — Ramos disse —, reúna os prisioneiros e chame toda a tropa pra cá. Nós vamos marchar até o ponto de encontro. É lá que teremos a melhor chance de extração deste lugar. E quero que você destrua aquelas antenas pessoalmente. Não aguento mais essa maldita interferência eletromagnética. Precisamos pedir ajuda pra dar o fora daqui.
— E quanto a ele? — Gamache perguntou, apontado para Peregrino.
— Saía da minha frente, Gamache! — Ramos ordenou.
Depois que o cabo partiu, o sargento voltou-se outra vez para o cadete.
— Nenhum desses vagabundos aceitou informar como se desliga essa porcaria. Por mim eu explodia tudo, mas o Escritório de Controle Ambiental não ia gostar, e com certeza o comando vai querer fazer uma perícia no veículo e identificar quem são esses caras. — Fez uma pausa. — Carrero explicou a sua teoria da Freedom Frontier. Prendemos cinco caras nesse veículo. São disciplinados, bem providos de recursos técnicos e sabem agir em coordenação, como você deixou claro. Pode bem estar certo.
— E o terceiro veículo, Sargento?
— Conseguiu evadir-se — Ramos narrou. — O outro já havia iniciado a perfuração. Nós destruímos a perfuratriz e os pneumáticos. O Controle Ambiental não vai gostar nada de ver tanto lixo espalhado por aqui, mas ia gostar menos ainda se eles saíssem com o lítio. Vamos dar o alerta do veículo evadido assim que a interferência for interrompida ou minimizada. Pode ser que escapem, mas com o que você conseguiu no ponto de encontro e o que nós conseguimos aqui, acho que vão acabar presos. Meu palpite é que saíram da operação mineradora que a Aliança tem do outro lado de Tharsis Montes. É autorizada, e eles devem ter fábricas automáticas capazes de produzir veículos e equipamentos complexos como esses aí. Não sei quanto aos explosivos, mas tudo é possível. — Ele fez uma pausa, e então disse: — Então você precisou mesmo usar a carabina.
Peregrino não disse nada. Era duro imaginar que os criminosos pudessem ter apoio nessa escala, para a sua agressão.
— Quantos anos você tem, garoto? — Ramos perguntou, de repente.
— Dezenove, sargento — Peregrino disse.
— Dezenove…
***
A tempestade de areia não dava sinais de amainar. Peregrino estava exausto, mas a demora maior foi causada por alguns dos cinco prisioneiros, que não tinham sapatas de areia. Em momento algum, a sua habilidade de orientação no terreno o traiu.
Quando chegaram ao ponto de encontro, Carrero mandou cavarem o terreno e estabilizarem as trincheiras abertas junto à lancha bombardeada, com um cimento de efeito temporário, produzido com a própria areia marciana. A carcaça da lancha servia de quebra vento. Soldados e prisioneiros se enfiaram lá, à espera do resgate. Carrero, porém, enviou Peregrino à cabine ejetada, onde ele prontamente se prostrou, despertando apenas quando as lanchas de resgate chegaram.
Era noite em Marte.
***
Cedo, no primeiro dia de aula após o fim de semana, Helena Borguese e Jonas Peregrino viram-se em pé diante da mesa da Diretora da AMOM, a Vice-Almirante Morgana Geber, os dois em posição de sentido e olhando fixo para o vazio.
— Descansar — Geber ordenou, e eles afastaram os pés e cruzaram as mãos nas costas. — Vocês dois estão aqui para terem conhecimento de algumas providências que tomamos, quanto ao seu comportamento durante o fim de semana.
“Foi determinado que a ação dos garimpeiros ilegais tem por trás a entidade militante conhecida como Freedom Frontier. Com alguma confiança, também se determinou que a intenção deles era se apoderar de uma quantidade substancial de lítio para emprego na produção desautorizada de armamentos nucleares. A direção da academia e do Primeiro DFE acredita que esse caso deve confirmar a situação da Freedom Frontier como uma organização terrorista. Tendo isso em mente, foi determinado que todos os envolvidos devem tratar tudo a respeito do caso como segredo. A academia pode ser alvo de represálias desses terroristas, se for revelado que seus cadetes e a sua guarda de segurança é que detiveram a garimpagem ilegal. Aqui estão alguns papéis para vocês dois assinarem, deixando claro que entenderam o que acabei de dizer.”
Peregrino passou os olhos no documento, e o assinou. Borguese levou um pouco mais de tempo.
— Há ainda a questão da demora no resgate das tropas e do nosso cadete, depois que o veículo de transporte foi inutilizado — Geber disse. — Como elemento de ligação, a Cadete Sênior Helena Borguese deveria ter acionado o grupo de resgate com maior antecipação. Esse é o meu entendimento, e a diretoria deveria investigar o comportamento da cadete, instituindo uma comissão para isso. Mas a necessidade de não franquear o conhecimento dos fatos a mais pessoas não vai permitir. Então a cadete está livre de punições ou de uma admoestação futura. O Cadete Jonas Peregrino deve igualmente se abster de tocar nesse assunto, no futuro, com a Cadete Sênior Helena Borguese ou com terceiros.
“Infelizmente, a necessidade de segredo também nos impede de elogiar publicamente o papel do Cadete Peregrino na captura dos criminosos em questão e na prevenção de baixas entre as tropas do Segundo Pelotão da Primeira Companhia da Destacamento da Guarda Especial de Marte, conforme esclarecimentos da Segundo Tenente Letícia Svarovskaya Carrero. Eu, porém, considero o comportamento do cadete motivo de orgulho para esta instituição.”
***
Quando Peregrino deixou o gabinete de Geber, encontrou a Tenente Carrero ocupando um assento duplo na antessala, vestindo o uniforme de passeio e lendo um livro de papel. Quando o viu, ela sorriu e levantou-se. Cheirava a sabão líquido, devia estar no banheiro quando ele e Borguese se apresentaram.
— Correu tudo bem lá dentro? — ela perguntou, olhando-o firme nos olhos.
— Graças a você, Tenente Carrero.
Tudo bem para ele, que secretamente lamentava a reprimenda que Helena Borguese havia sofrido. O silêncio entre o grupo de comando liderado por Carrero, os analistas e oficiais que acompanhavam a operação nas instalações da 1ª Companhia, e Borguese na sala de comunicações da AMOM talvez não fosse tão grande para justificar que ela desse o alarme e exigisse o envio de um grupo de busca.
Diante dele, Carrero assentiu lentamente com a cabeça e lhe estendeu a mão.
— Letícia.
— Jonas — ele disse, ao apertá-la.
Ela segurou sua mão na sua, por um bom tempo. Era muito forte, de aperto firme mas sem esmagar seus dedos.
— Quero tomar um café com você na cantina, Jonas.
— Melhor na cafeteria do observatório. O café não é melhor, mas a vista vale a pena.
— Claro.
***
Quando Letícia e Peregrino se sentaram em uma das mesas perto dos janelões que davam para o paredão escuro da escarpa de Olympus Mons, ele não tirou os olhos dela. A mulher olhou pelas janelas. A tempestade global ainda rugia lá fora. A Olympus Rupes Sul mal era visível por trás das cortinas nebulosas de areia, e não havia chance de verem o pico formado pela borda da caldeira.
— Você disse que a vista aqui valia a pena! — Letícia exclamou.
— E não menti — ele respondeu, ainda com os olhos nela. — Aqui é mais tranquilo.
— Entendi — ela disse, baixando os olhos e corando um pouco.
Um segundo depois, um relâmpago marciano abençoou os dois. No tampo da mesa, o cardápio brilhou na touch screen. Eles fizeram os seus pedidos.
— Eu soube que a academia vai manter tudo sob segredo — Carrero disse. — Quer dizer que você não vai receber o reconhecimento que merece?
— Quer dizer que tudo o que diz respeito à participação da academia no bloqueio das ações dos garimpeiros e na captura deles não pode ser discutido. Mas eu espero que o seu desempenho seja elogiado, Letícia, mesmo com o segredo e tudo isso.
— A recomendação do comandante da companhia nesse sentido já foi encaminhada, dentro do caráter secreto de tudo — ela disse. — Vai ficar bem na minha ficha… graças a você.
Peregrino foi pego de surpresa. Ele não tinha enxergado a coisa desse jeito. Na sua cabeça, ela é que o tinha tirado de uma enrascada com Geber e a Diretoria.
— Fico muito feliz, Letícia. Mas não podemos conversar sobre o ocorrido.
— O Sargento Ramos também vai receber uma boa avaliação — ela disse, sem dar bola para o alerta dele. — Eu a encaminhei hoje, antes de vir pra cá, conversar com a diretora. Junto com uma admoestação oficial contra o Cabo Pablo Gamache.
Ele não fez comentários, embora o destino futuro de Gamache não lhe despertasse um traço da preocupação que sentia quanto ao futuro da sua colega Borguese.
— Ramos acha que o terceiro veículo — Letícia disse —, o que se evadiu quando os garimpeiros foram abordados, pretendia distanciar-se, desembarcar lançadores de foguetes, e contra-atacar. Mas provavelmente desistiram quando souberam que os colegas que nos atacaram na lancha se deram mal. Então provavelmente você salvou alguns dos soldados de Ramos também.
Peregrino assentiu lentamente com a cabeça.
— Difícil dizer, eu acho, até que os prisioneiros contem alguma coisa.
— Um alerta foi dado contra o terceiro veículo — Letícia insistiu. — Esperamos que as autoridades da Aliança os peguem em breve.
Peregrino não disse nada. Ele gostaria de conhecer a história inteira, mas não dependia mais dele.
— Você tem namorada aqui na AMOM? — Carrero perguntou, no seu silêncio e indo direto ao ponto antes que o café e os salgadinhos com os necessários sais minerais da Terra chegassem.
— Não — ele disse, quase deixando escapar o riso. — O regulamento e o código do corpo de alunos não permite. Mas só proíbe o relacionamento entre alunos — apressou-se a emendar.
Letícia olhou rapidamente em torno.
— Eu gostaria de ir com você a Nueva Esperanza pra passarmos o próximo fim de semana juntos — disse. E então: — Além da recomendação ganhei uma folga extra como reconhecimento pelo sucesso da missão, e nada mais justo que dividir isso com você. Uma banda de jazz vinda de Nozomi vai se apresentar lá… Tenho certeza de que… Bem, de que vamos nos divertir muito.
Peregrino apenas devolveu o seu olhar. O instante de hesitação feminina meio que revelou aos seus olhos toda a beleza dos traços de Letícia Carrero. O brilho em suas pupilas apresentou-lhe promessas que iam muito além de dois dias de entretenimento musical em Nueva Esperanza.
— Você já esteve com uma mulher ciberaumentada? — ela perguntou, quase num cochicho. — Eu prometo que você nunca mais…
Ele envolveu a mão dela na sua. O gesto claramente a surpreendeu. Sua mão forte pareceu tímida, expectante, na dele.
— Apenas prometa que vai ser gentil comigo — Peregrino disse, em um tom ainda mais baixo. — E terei muito prazer em ir com você e criar junto lembranças boas de se guardar. Citações oficiais e missões bem-sucedidas são importantes, mas vamos construir alguma coisa que não dê pra dividir com ninguém, só nós dois.
[1] As eras geológicas de Marte possuem nomenclatura própria. A era amazônica começou há 2.8 bilhões de anos, e corresponde ao final do período arqueano e o início da era proterozoica na geologia da Terra. A era amazônica persiste até o presente.
[2] Cratera de impacto que, com o tempo, foi apagada pela erosão, voltando a ser descoberta ou reconhecida como cratera mais tarde.
[3] O estudo das apresentações geográficas do planeta Marte (o deus da guerra Ares, na mitologia grega).
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