A Peneira
por Rafael F. Faiani
W789 era o código dela.
Não tínhamos nome ali na Fábrica, até isso de nós foi tirado. Toda vez, no mesmo horário, eu a observava atravessando o corredor do segundo andar, enquanto seguia a linha verde, sua linha-guia. A maior parte do tempo eu ficava no piso inferior, executando minhas ordens que apareciam nas telas de cristal líquido, evitando cometer qualquer deslize para não ser punido pelos platinados. Quase no final do expediente, as nossas linhas se aproximavam e era nessa hora que nos víamos de perto. Havia sempre um reconhecimento, apesar de não ousarmos emitir qualquer som; as câmeras fiscalizavam os movimentos e qualquer sinal de comunicação. Os olhos dela não traziam a obediência cega assinalada nos outros, havia um resquício de revolta, um fogo que ardia dentro de si.
Antes da Fábrica, houve a Triagem. Lembro-me bem dos vídeos de orientação. Foi como se tivesse nascido naquele momento, pois não havia nada na memória antes daquilo. A Triagem aparou bem as arestas e deixou clara que a insubordinação não era tolerada. Quando dormia, nas seis horas permitidas, sonhava com borrões de outra vida e tentava resgatar meu nome em vão. Sim, de certo havia outra vida, mas parecia que praticamente ninguém havia despertado para essa compreensão.
A Fábrica funcionava em turnos de dezoito horas, sendo que se alimentar e ir ao banheiro eram partes das tarefas impostas. Em alguns pontos cegos, como no canto do refeitório ou no corredor que levava aos chuveiros, fazia gestos para me comunicar. Em raras ocasiões, recebia alguma resposta. Perdi a disposição de qualquer contato ao notar que as pessoas com quem me comunicava simplesmente desapareciam da Fábrica ou iam para setores bem distantes onde não teria mais acesso a elas.
Estava preso a amarras invisíveis. Não poderia sair do meu setor e da minha linha-guia. Os dias eram todos iguais e foi num dia qualquer que tomei uma decisão. Falei com W789 aos nos aproximarmos no final do turno.
— Você… – Minha voz saiu estranha devido a falta de uso. – Você também quer fugir daqui?
Ela arregalou os olhos de medo. Silêncio era uma das regras que jamais deveria ser quebrada. Só havia o murmurar das máquinas da Fábrica, nada mais. Foi quando os platinados saíram de portas, escondidas por paredes lisas e vieram ao meu encontro. W789 piscou para mim em resposta e compreendi que a chama da revolta estava lá, mais acesa que nunca. Confirmar aquilo valeria qualquer punição. Eles me puxaram em direção a abertura das paredes. Para o meu terror pegaram W789 também.
— Deixem-na! – gritei. – Ela não teve culpa.
Fiquei em uma sala escura por dois dias. Sem refeição. No chão duro e frio, assistindo vídeos de orientação. Não sabia se para outras pessoas a punição era efetiva e inibia qualquer reação contra as regras, mas para mim inflamou ainda mais meu senso de revolta. Ao retornar para a linha de produção, não encontrei mais W789. Esperava que ela estivesse nos andares superiores, então conforme os dias se passavam fui estudando cada ângulo de observação a sua procura, ousava até caminhar pela linha azul em pontos diferentes, fazendo tarefas adicionais. Talvez, dessa forma, passasse a impressão que eu estava tentando me redimir.
Em um dia específico, fui pego de surpresa com a mensagem na tela para eu mudar de linha. Subi para o quinto andar e comecei a executar funções da linha-guia amarela. Eram tarefas mais elaboradas, que exigia maior concentração. Além das câmeras, drones e platinados nos vigiavam de perto. Havia poucos trabalhadores ali, não mais que vinte. Não sabia o que pensar. Se aquele seria algum tipo de recompensa pela primazia dos serviços executados ou uma forma de redobrar a vigilância. Naquele setor não teria como olhar para os lados sem chamar a atenção. No final do turno, recebi a ordem de seguir até o final da linha-guia. Uma porta se abriu e um platinado fez sinal para que eu entrasse. Ao retirar a máscara, me deparei com um rosto mais jovem do que eu esperava.
— Você estava certo, Ricardo.
Fiquei absorto. Abri a boca, mas reprimi a intenção de me comunicar.
— Aqui você está liberado para falar.
— Ricardo? Esse… Esse é meu nome? Você me conhece?
— É claro que sim.
— Onde está a W789?
— Todas as perguntas terão uma resposta. Tenha paciência.
— Quem é você? – insisti em perguntar.
— Suas ordens foram bem específicas. Se você realizasse determinadas ações, teria que ser retirado.
— Do que está falando?
— Do experimento, é óbvio. Bom, vamos restabelecer a sua memória. Daí tudo fará sentido.
***
A reunião começaria em breve.
Repassava mentalmente os tópicos a serem abordados. Com o experimento, os rebelados não passariam mais despercebidos, seria mais fácil identificá-los. Minhas recordações da Fábrica foram mantidas, era essencial para um entendimento completo. Mais de uma vez, me peguei com os dedos sobre o teclado, hesitando em digitar os comandos para dar um fim e erradicar a pasta chave do projeto. Precisei colocar uma trava de segurança adicional para impedir algum ato impensado. O fato era que se eu não entregasse o que eles pediam, outra pessoa entregaria. Pelo menos assim, eu ainda teria as rédeas da situação.
— Senhor? Cinco minutos – a voz veio pelo intercomunicador.
Observei as câmeras da estufa. No início acreditava que o experimento seria a melhor solução, mas agora não estava mais convicto. O homem não era uma máquina e tratá-lo como uma, tentar moldar o barro novamente e formar um novo produto para a sociedade perfeita estava errado. Só atingi essa percepção ao vivenciar a experiência. Não havia perfeição na humanidade. As emoções não permitiam. Éramos apenas produtos de nossas escolhas e retirar o livre arbítrio, colapsaria o que ainda nos restava.
— Dois minutos.
Acessei a pasta chave do projeto chamado Peneira. Literalmente separaríamos o joio do trigo. Havia deixado 10% de tolerância, mas aumentei para 30%. A faixa de corte diminuiria, o que daria uma chance maior aos residentes na Fábrica. Obviamente, aquilo era apenas uma simulação, mas quem reprovasse ali, com certeza seria reprovado numa reincidência, ou mesmo já seria considerado um refugo. Não havia como saber. Disponibilizaríamos os resultados do teste, mas o destino de todos escaparia de minhas mãos.
— Senhor? Eles chegaram.
***
— Quantos dias faltam para terminar a simulação?
— Três dias – respondi sob o olhar de todos na sala. Os que estavam ali faziam parte da Cúpula, a Nova Ordem criada.
— Perfeito. Zeus estará pronto para ser implementado assim que obtivermos a liberação da verba.
Imaginei um mundo em que todos estariam sob a fiscalização de uma inteligência artificial. Não haveria mais sentimento, apenas a frieza dos cálculos de uma máquina.
— Resultados promissores – o representante do governo falou, analisando os dados disponíveis. – O sistema de pontuação é bem específico. Até agora foram identificados 52 refugos, sendo que 5 estão na faixa de transição. 1 morte dentre os 999 residentes. Código W789. Pode me explicar o que aconteceu?
— Parada cardíaca.
— Mas diz aqui que ela só tinha 34 anos.
— Totalmente fora de padrão. Não havia como prever.
— Entendo. Sem problema. Ela estava enquadrada como refugo mesmo.
Aquela frieza me deu arrepios. Pessoas tratadas como estatísticas. O futuro da humanidade trilhava um caminho perigoso. Receava que sem volta.
***
Havia 77 fábricas espalhadas pelos países unificados. A incursão na Fábrica era obrigatória a todos e sujeito a nova estadia caso houvesse faltas disciplinares dentro da sociedade. Após dois anos da ativação do Zeus, as primeiras rebeliões começaram. Tinha plena consciência que criara uma bola de neve ao aplicar alta tolerância nos testes.
Insatisfeita, a Cúpula solicitou que a tolerância nas fábricas fosse inferior a 5%, o que elevaria o número de refugos. O sistema estava desmoronando. Os refugos viviam em campos de concentração, submetidos a algum outro processo de controle. O que aconteceria com uma lotação nesses campos? Extermínio em massa?
A lua de sangue no céu parecia um sinal de que tudo acabaria. Tomei coragem e cancelei as travas de segurança no código. Ensaiara o momento inúmeras vezes. Desativei a Inteligência Artificial denominada Zeus e exclui as linhas de execução do Projeto Peneira. As fábricas pararam de funcionar. Dei a entender que a Cúpula estava no comando da programação, mas não estava.
Fui até a estufa.
Sandra me esperava, enquanto regava as orquídeas.
As explosões haviam recomeçado. Eram os rebelados. Não aqueles que estavam nos campos de concentração, mas os que foram aprovados pelas fábricas.
— Acho que sou culpado pelo que está acontecendo.
— Não se recrimine. Você deu uma chance a todos.
Olhei para seu rosto e voltei naquele tempo em que nos víamos de longe, sem entender onde estávamos, seguindo rotinas para avaliar o risco que representaríamos para o novo sistema.
— Estamos seguros aqui. Ninguém conhece esse lugar. Está com medo? – perguntei.
— Não mais.
Ela me abraçou. Aquele não era o mundo que sonhávamos; na verdade, estava muito longe disso. Mas era um recomeço. Para o bem ou para o mal, era um recomeço.