Vinho para Bruxas, Leite para Santos

por Rachael K. Jones (EUA), tradução Santiago Santos – especial para o Somnium

Minha avó não teria gostado de ver um Engenhoqueiro em uma fantasia de Papai Noel, meu traje costumeiro no hospital infantil em dezembro. Ela acreditava que frivolidade não levaria a nada de bom na nossa profissão, quando um procedimento de rotina podia acabar em tragédia. Eu entendi o ponto dela quando me vi fantasiado dando más notícias a uma garota de sete anos e sua amiga doente na véspera de Natal.

Maria não devia estar no quarto de hospital de Lia pra começo de conversa. Ela devia estar na Ala dos Bonecos com o seu irmãozinho Enzo, infectado com bonequismo. Em vez disso, as duas meninas estavam sentadas com as pernas cruzadas na cama, compartilhando doces que eu sabia que Lia não podia comer em sua condição. Falha congênita do coração não exigia abstenção de açúcar, mas com sua transferência iminente, os Coromantes desaconselhavam comida pesada, já que poderia interferir com a medicina mágica.

Eu não sabia como ela tinha contrabandeado a mercadoria pra cá, mas era de se esperar isso de Maria. Não era fácil pros irmãos de crianças doentes, trancafiados no hospital por dias a fio. O jeito de Maria lidar com isso era se enfiando em todos os lugares onde não devia entrar. Mas na véspera de Natal, todo mundo dava um jeito de fingir que não via.

— Maria — disse a Dra. Vanessa Silva —, você pode dar licença pra gente? Precisamos de um pouco de privacidade com os Giordanos agora.

— Mamãe, ela não pode ficar? — perguntou Lia.

— Claro. Tenho certeza que pode sim — disse a Sra. Giordano. Ela fechou seu livro e deu toda a atenção à dra. Silva. — Qual o problema, dottore?

A Dra. Silva olhou de novo pra Maria, respirou fundo. — Lamento dizer que houve um atraso na transferência da Lia hoje.

— O que você quer dizer com “um atraso”? — a Sra. Giordano perguntou com uma voz cuidadosa, sufocada.

A Dra. Silva coçou a cabeça. Ela tinha se voluntariado pra trabalhar no turno de Natal pra que os outros Coromantes pudessem ficar com suas famílias à noite. Mas eu sabia que ela não tinha ninguém pra encontrar em casa exceto a ausência do seu gato velho, que tinha morrido no começo do mês. Ela limpou a garganta. — As engrenagens que o Enzo precisa foram enviadas por um Engenhoqueiro do Canadá na semana passada. O pacote deveria ter chegado aqui dois dias atrás, mas receio que tenham perdido ele. Sem as engrenagens, não podemos transferir o bonequismo do Enzo pra Lia hoje, como planejado.

Na verdade era bem pior que isso. Originalmente, tínhamos pedido as engrenagens de uma Engenhoqueira na Bélgica, mas antes que fossem produzidas, as autoridades descobriram que a Engenhoqueira estava vendendo engrenagens preciosas de órgãos humanos no mercado negro, para uso em maquinários. O Código dos Engenhoqueiros proibia o uso de partes humanas, mesmo quebradas e descartadas, para consertar uma máquina, e a prenderam por isso. Um Engenhoqueiro canadense fez o pedido no último minuto, mas agora o pacote tinha se perdido no caminho para Vittorio Veneto. Sem as engrenagens, eu não podia consertar o Enzo, e a Dra. Silva não podia fazer a transferência da doença mágica que curaria o bonequismo de Enzo ao infectar Lia.

— Mas a Lia não pode esperar tanto assim! — Maria ficou com as bochechas bem vermelhas. — Ela tá muito doente! — Ela estava certa. Lia Giordano estava mesmo morrendo devido ao problema no coração. Ela não chegaria à virada do ano se não conseguisse tratamento logo. Mas se a Dra. Silva conseguisse transferir o bonequismo de Enzo pra menina, ela se transformaria em uma boneca viva. Para um Engenhoqueiro habilidoso, o que é impossível curar na carne é fácil de consertar na madeira. Mas até que eu conseguisse consertar Enzo primeiro, até que suas próprias engrenagens substitutas do coração chegassem, toda a operação estava paralisada.

Lia se encolheu nos travesseiros, fungando e segurando as lágrimas. A Sra. Giordano fez carinho na mão dela. — Vai ficar tudo bem, bambina. — Na sequência se virou pra Dra. Silva. — O que nós podemos fazer a respeito?

A Dra. Silva me indicou com a cabeça. — Nico Cinque telefonou pra Engenhoqueira canadense, e ela começou a trabalhar em novas engrenagens substitutas agora mesmo. Temo que a única coisa que podemos fazer é esperar.

Maria reparou na minha fantasia — a barba e o cabelo brancos de lã, o suéter vermelho costurado à mão e os óculos meia–lua, o gorro e os suspensórios — e eu repentinamente me senti mais envergonhado do que jamais fiquei em toda a minha vida. — Faça algo, Papai Noel! Eu sei que você consegue! É véspera de Natal!

— Não posso, minha pequena. Não é assim que funciona — isso soou insatisfatório até mesmo pra mim. — Minhas bochechas queimavam. A Sra. Giordano tentou dizer algo, mas Maria a interrompeu.

— Você mentiu. Você prometeu pra Lia e pro meu irmão que as engrenagens estariam aqui antes do Natal, e você mentiu.

Era verdade. Eu tinha feito aquela promessa pra eles assim que as crianças foram admitidas, durante uma consulta na minha oficina de Engenhoqueiro. — Eu não sabia — eu disse.

— Vou contar pro meu irmão — Maria marchou pra fora sem olhar pra trás.

***

Minha avó, a brilhante Nicola Quattro, pensava que as crianças italianas deveriam se manter fiéis ao velho costume da Befana, a boa bruxa que trazia brinquedos na Epifania, e não ao Papai Noel, o forasteiro intruso. Quando meus irmãos e eu começamos a deixar leite e biscoitos ao lado do tradicional copo de vinho tinto da Befana, ela proclamou que nada de bom resultaria disso. Eu estava começando a concordar com ela.

Uma vez longe dos Giordanos, a Dra. Silva me puxou, sua sobrancelhas torcidas num V sombrio. — Nico Cinque, seu imbecil! Aquela criança tem todo o direito de estar brava com você. Como você ousa fazer promessas que não temos como cumprir? Você prometeu a ela que as engrenagens estariam aqui pro Natal? Bah! — Suas mãos se fecharam, punhos à mostra.

— Não fiz por mal — eu disse. — Eu só queria dar esperança. Eles são crianças. É Natal.

— Esperança — disse a Dra. Silva — é uma coisa amarga e perigosa. Olhe ao seu redor. Nós trabalhamos com crianças doentes. Mas você desfila nessa roupa — ela indicou minha fantasia — e faz graça e fica insinuando, e as crianças realmente acham que você é o Papai Noel, que você consegue fazer milagres. E você tem a cara de pau de ficar surpreso quando elas descobrem que é tudo baboseira.

Fiquei chocado com a profanidade. — Não estou contando mentiras. Isso alegra elas.

— É errado fazer promessas falsas — ela disse. — A vida não é um filme de Natal, Nico. O universo não confere o calendário quando uma criança morre. Agora, se me dá licença, tenho que dar más notícias pra outras famílias.

***

Depois de todos esses anos, eu me sentia confortável com a minha forma de lidar com as crianças. Minha avó foi pioneira em muitas técnicas brilhantes de Engenhoqueirismo, embora nunca tenha sido uma pessoa carinhosa. Como seu aprendiz, eu morria de medo de desapontá–la, e resolvi ser um Engenhoqueiro mais jovial quando chegou a minha vez.

Mas a acusação de Maria me incomodava. Arranquei meu gorro e o enfiei no bolso traseiro.

Um corredor dividia a Ala dos Bonecos em metades: oeste, onde as crianças–boneco ficavam, e leste, onde mantíamos crianças doentes que eram pares compatíveis de pré–transferência. Todas elas compartilhavam uma sala de jogos envidraçada na entrada da Ala.

Mesmo naquele humor terrível, meu estado de espírito se elevou vendo crianças em diferentes estados da doença brincarem juntas. Algumas, completamente transformadas, mancavam em membros finos de madeira com roupas de boneco que não se encaixavam de jeito nenhum nas suas medidas. Outras pareciam quase normais, exceto por suas peles, que haviam assumido uma textura de riscas.

Cada uma delas foi admitida em condição grave: queimaduras de terceiro grau, defeitos congênitos dos órgãos, câncer incurável ou lesões traumáticas. A Dra. Silva ou outro Coromante transferiria o bonequismo de uma criança compatível completamente transformada, e então o paciente doente se tornaria um boneco vivo, pele carbonizada se tornando madeira queimada, olhos se tornando vidro, braços e pernas quebrados se tornando cavilhas de madeira rachadas, e órgãos falhos se tornando engrenagens de madeira encantadas. Então elas passavam para os cuidados do Engenhoqueiro. Eu trocava partes quebradas por novas, para que quando os Coromantes transferissem o bonequismo pra próxima criança, o paciente original voltasse à carne curado de todas as doenças.

À distância, não dava pra dizer qual doença tinha trazido elas aqui, mas você podia adivinhar. A garota de carvalho com as pernas de madeira arqueadas veio até nós com osteogenesis imperfecta. Outro garoto estava nos estágios finais da leucemia. Minúsculos buracos de agulha feito furos de cupim infestavam seu corpo de pinho. Levaria algum tempo pra consertar ele. Cada membro devia ser examinado e trocado um a um.

A parte complicada era encontrar peças substitutas compatíveis. Engenhoqueiros as construíam manualmente, mas como tipos sanguíneos, eu só podia fazer peças para crianças que combinavam com a minha própria assinatura mágica. Então eu trocava. Eu enviava partes para outros Engenhoqueiros ao redor do mundo, e em troca eles faziam peças substitutas pros meus pacientes.

O bonequismo só era transferido entre dois pacientes cujas assinaturas fossem compatíveis, e apenas crianças podiam contrair a doença. Na maior parte do tempo, nosso programa corria dentro do planejado, mas de vez em quando algo dava errado.

Enzo e Maria estavam encolhidos no canto da sala de jogos, sussurrando. O garotinho parecia bem alegre, apesar da estranheza da sua aparência: membros afinados até se tornarem cavilhas esguias de carvalho, rosto arredondado e com textura de madeira, olhos pretos como café envidraçados, o cabelo castanho e grosso amontoado como um novelo de lã. Ele vestia uma pequena fantasia de elfo verde, provavelmente canibalizada do ursinho de pelúcia que Maria usava como uma banqueta. Maria tinha uma devoção quase fanática pelo garotinho. Ali perto, a Sra. Cattaneo tinha pegado no sono em uma espreguiçadeira de estofado generoso, as pálpebras inchadas de choro ou de privação de sono ou ambos.

Sem uma transferência, pensei, nenhum deles nunca vai crescer.

Esse era o milagre salvador de vidas e a maldição debilitante da doença: perder a capacidade de crescer ou mudar, a carne endurecendo até virar madeira. Marionetes não morrem — elas só quebram. Troque as partes ruins e ficam novinhas em folha, mas ainda assim serão bonecos para sempre. Eles não crescem mais. O bonequismo é incurável a não ser que um Coromante o transfira do corpo de uma criança pro de outra.

Fiquei tempo demais diante do vidro, porque Maria me notou. Ela protegeu Enzo com seu corpo e ficou me encarando. Aquele olhar de desprezo novamente. O vidro bloqueava o som, então não captei o que ela disse, mas todas as outras crianças pararam de brincar e me encararam também. Nenhuma estava sorrindo.

Minhas bochechas queimavam. Me virei, me forçando a caminhar de volta pra oficina.

Era a minha tradição deixar a oficina dos Engenhoqueiros com a cara do Natal. Serragem e tinta se misturavam com pinho e canela. Grinaldas amarradas pelas paredes, entrelaçadas com pisca–piscas. Eu formava a peça central, barba e fantasia tiradas de um livro natalino, os bolsos explodindo com bengalinhas doces: Nico Cinque o Engenhoqueiro.

Nicola Sei, minha neta e aprendiz, tinha dado um jeito no lugar, varrendo a serragem e encerando as antigas mesas de trabalho. Apesar da idade delas, as mesas de trabalho não estavam na nossa família há muito tempo. Minha avó preferia mesas cirúrgicas de aço às antigas, e tabelas anatômicas a grinaldas. O metal é mais resistente aos respingos de encantamento que às vezes acompanham a medicina mágica. No seu tempo, a oficina do Engenhoqueiro poderia se passar por uma sala de cirurgia.

— Precisa de mais alguma coisa, Nonno? — perguntou Nicola, pegando seu casaco e boné.

Balancei a mão na direção da porta. — Pode ir na frente. Eu vou daqui a pouquinho. — Nós tínhamos vindo de lambreta pro hospital hoje. Depois que ela saiu, liguei pra agência dos correios novamente, mas sem resposta. O ódio de Maria pesava no meu coração como um pecado não confessado. Como eu podia ir pra casa e aproveitar a véspera de Natal com os meus filhos e netos, dando presente atrás de presente enquanto uma criança doente esperava por uma entrega que nunca chegaria?

Onde estavam as engrenagens? Se elas chegassem eu poderia engolir aquela bola travada na garganta.

Esperança é uma coisa amarga e perigosa, a Dra. Silva disse. Devagar, cansado, abotoei o casaco. Peguei o gorro, mas sentindo aquela bola na garganta de novo, deixei ele no meu bolso.

Uma porta discreta nos fundos da oficina levava a um corredor de serviço. Vestindo meu casaco vermelho, vermelho como minha vergonha, eu não suportaria passar pelas crianças pra sair do hospital.

O corredor de serviço teria agradado minha avó, com suas paredes ultrabrancas e cheiro antisséptico, desprovido de bagunça ou decorações. Me arrastei na direção dos elevadores, cabeça baixa, desfrutando a solidão. A equipe já tinha ido para casa pro Natal.

Algo fez barulho atrás de mim. Aumentei o volume do aparelho de audição até conseguir distinguir duas––não, três––vozes sussurrando e rindo. Aumentei um tiquinho mais o volume.

Um guincho agudo quase me deixou surdo quando uma cadeira de rodas motorizada fez a curva bruscamente e disparou na direção das minhas canelas a toda velocidade. Maria estava encarapitada no encosto da cadeira, o cabelo preto solto ao vento. Enzo sentava no ombro dela, braços de madeira enroscados no seu pescoço, o grito engolido pelo grito da irmã.

Mas o que mais me impressionou foi a garota de rosto pálido sentada na cadeira, quase soterrada pelos cobertores: ninguém menos que Lia Giordano, que definitivamente não estava mais seguindo as ordens da sua médica.

Me espremi contra a parede tarde demais. Um descanso de perna bateu forte nas minhas canelas. Minha visão embranqueceu de dor. A cadeira desacelerou. Maria girou a cabeça, me rastreando.

— Você! — ela cutucou o ombro de Lia. — Vai, vai, vai! Rápido!

— Esperem! — Eu me atrapalhei com meu aparelho de audição. Minha cabeça zunia. Os fugitivos desembestaram novamente a toda velocidade. Corri atrás deles, as botas martelando, as canelas machucadas latejando.

— Esperem! Parem! — Eles não podiam sair do hospital. Na condição de Lia, seria o seu fim. A Dra. Silva me mataria. Os pais dela iriam––ah, eu não queria nem pensar nisso. E na véspera de Natal! Minhas botas baratas da fantasia estapeavam os azulejos. As lâmpadas fluorescentes e estéreis me nauseavam. Minhas costelas queimavam.

— Crianças, esperem! — Cambaleei pra dentro do lobby do elevador bem a tempo de ver as portas se fechando, os dedos de madeira de Enzo acenando arrivederci enquanto escapuliam na direção do subsolo.

Os números diminuíram, três–dois–térreo, e pra minha surpresa continuaram descendo até o S1, o necrotério. Soquei o botão com a seta pra baixo e rezei pro elevador chegar, pronto.

***

As portas se abriram em um andar que eu não tinha visto desde o último Natal, graças a Deus. Meus olhos arderam devido aos fortes vapores químicos do embalsamento. Isso grudava no seu cabelo por dias, muito depois da família ter reclamado o corpo. Uma imagem espontânea apareceu na minha mente: uma mão branca de carne conectada a uma longa cavilha de madeira, ligada a um corpinho que havia se tornado uma quimera, um emaranhado de madeira e carne lutando pela dominância. Rejeição de transferência. Raro porém fatal.

Não vi as crianças em lugar nenhum. Aumentei o aparelho de audição. Ao longe, rodas ressoaram.

Corri na direção do som, ignorando as pontadas nas costelas e os protestos das canelas. Vi eles no final de um longo corredor. A cadeira de rodas tinha parado enquanto Maria movia uma maca que barrava o caminho. No final do corredor, uma placa de saída pulsava vermelha sobre uma saída de incêndio.

— Esperem! — eu gritei.

— Ah, não. O Papai Noel de mentira––ele tá vindo! — disse Enzo, apontando um dedo por sobre o encosto da cadeira.

Maria enfiou a maca na barra anti–pânico da porta de saída. — Vamos! — ela gritou. A neve soprou pra dentro enquanto a cadeira de rodas desembestava por aquele mundo branco.

Corri pra fora. Às quatro da tarde, o sol pairava logo acima dos telhados de terracota vermelha. Os Alpes italianos se espraiavam pelo horizonte, seus picos brancos tingidos de dourado no pôr do sol antecipado do inverno. A cadeira de rodas tinha desaparecido pela estrada. As ruas medievais serpenteantes de Vittorio Veneto proviriam um labirinto perfeito para três crianças que não queriam ser encontradas.

Trotei atrás delas, ofegando no ar gelado. Haviam talhado uma trilha distinta pela neve. Percebi que deveria ter parado pra pegar minha lambreta, ou soado o alarme do hospital, ou até mesmo ter lembrado do meu celular. Tarde demais agora.

A cadeira não ia andar pra sempre. Estremeci e ajeitei meu casaco. Segui em frente, rezando pra não ter que ir muito longe.

***

Cheguei no centro da cidade, uma caixa formada pela prefeitura de um lado e a catedral de São Nicolo do outro. O lugar, que já fora o reino dos pombos, servia como praça ao ar livre para pedestres, embora hoje estivesse lotada de barracas de lona cheias de cachecóis de seda e pães de gengibre, doces mergulhados em mel e vinho quente em canecas, enormes ornamentos de vidro soprado e bonecos comemorando a Befana, que entretinha os Três Reis Magos em seu caminho para visitar o pequeno Cristo.

Abri um caminho até a catedral. Os frequentadores do mercado se aglomeravam ao redor de mesas pequenas, bebericando vinho e curtindo a música ao vivo. Nenhum dos vendedores tinha visto meus pacientes desaparecidos na multidão.

Alcancei os degraus da São Nicolo. Eu não ia muito à missa, diferente da minha avó, que se considerava uma mulher religiosa do seu próprio jeito excêntrico. Ela guardava um diário de orações dedicadas ao seu patrono santo Nicolas, meu homônimo e parente nove gerações distante, que esperava resolver com dados concretos a questão da existência de Deus. Antes do seu tempo, crianças com bonequismo desvaneciam, sua força se atenuando ano após ano até que se tornassem múmias fantasmagóricas de madeira. Nico Primo descobriu que a doença podia ser transferida, e por esse feito o santificaram.

Nos degraus da catedral, uma velha distribuía pequenos presentes embrulhados a uma dúzia de crianças. Usava um vestido de retalhos esfarrapado, um chapéu pontudo, e carregava uma vassoura torta amarrada nas costas. Ela deu uma piscadela pra mim.

— Papai Noel — ela disse, numa voz alta e teatral de contadora de histórias, piscando na direção das crianças —, o que você está fazendo aqui? Você deveria estar ocupado demais essa noite pra visitar o mercatino di Natale!

— Eu poderia te dizer o mesmo, Befana — respondi. — Faltam doze dias pra Epifania.

— Então não tenho mais muito tempo pra encontrar os Magos, não é? — Rezava a lenda que os Três Reis Magos convidaram a velha para acompanhá–los em paga à sua hospitalidade, mas a Befana recusou. Mais tarde, tomada de arrependimento, ela juntou alguns brinquedos que pertenceram ao seu próprio filho morto e voou porta afora na vassoura para alcançar eles. Mas nunca conseguiu encontrá–los.

Baixei minha voz. — Estou procurando algumas crianças. Dois pacientes do hospital––um com bonequismo e outra numa cadeira de rodas. E uma garota mais velha.

— Você acabou de perder elas. Estavam procurando uma entrega lá na agência dos correios, algo que o Papai Noel tinha prometido? — aquilo soou como uma acusação.

Cocei minha barba. — Eu sei disso, Befana. Estou tentando resolver o problema.

— Elas acham que são espertinhas, tomando as ruas menores. Mas vão deixar marcas visíveis. Tente aquele caminho — ela meneou a cabeça na direção de uma rua que seguia pro sul.

Uma pista. Senti uma onda de alívio. — Obrigado, obrigado! — eu estava prestes a partir, mas ela segurou meu cotovelo.

— Está liso praqueles lados. Perigoso pra ossos velhos — ela me ofereceu a vassoura. — Aqui. Deve dar uma boa bengala.

Testei meu peso contra o cabo. — Vou cuidar bem dela — prometi.

— É só uma vassoura — ela disse. — Buon Natale. Coma a sua cota de leite e bolachas.

— E aproveite o seu vinho.

Nunca descobri o que aconteceu com os meticulosos diários de oração da minha avó, se ela descobriu que eles tiveram algum efeito que fosse, mas eu fiz uma oração para Nico Primo de qualquer forma. Mal não faria.

***

Entrelaçada com as marcas de pneu, achei a trilha da cadeira de rodas seguindo pela neve fofa sobre a calçada. Soprei um agradecimento pro Velho Nico, varri a neve da calça com a vassoura e parti na direção da trilha. Meu casaco estava ensopado. Estiquei as abas dele, tentando secá–lo.

O frio se intensificou ao cair da noite. Eu havia chegado os arredores da cidade. Em Veneto as cidades se conectavam umas às outras por pequenos trechos de estrada como miçangas em um terço. A neve repousava tão grossa sobre a placa de gelo que você tinha que bater o calcanhar pra baixo a cada passo. Mesmo assim as marcas da cadeira de rodas seguiam em frente.

Nicola Quattro odiava o frio. Na sua época, lareiras aqueciam o hospital. Minha avó, em deferência à segurança de seus pacientes, proibiu lareiras na oficina, então ela sempre trabalhava no frio. Durante meu aprendizado, caldeiras a vapor entraram na moda, mas minha avó tremia não importava o calor que fizesse. Ela havia entranhado seu velho inimigo no coração, e se tornaram um e o mesmo no final.

Crãnch, crãnch. Minhas botas mastigavam a crosta de gelo. Um dos pés se abriu no solado. Amaldiçoei minha fantasia ridícula e seus acessórios baratos. Se não fosse pelo meu capricho, eu talvez não estivesse dolorido e com frio e exausto. — Já entendi — eu disse em voz alta. — Não sou o Papai Noel. Nunca deveria ter fingido que era.

O solado solto se enroscou no gelo. Girei os braços no ar e caí pra frente, minhas canelas batendo no chão, meus joelhos pegando fogo. — Uff! — Lágrimas quentes brotaram dos olhos, e eu ri entre fôlegos roubados. Rolei e fiquei esticado na neve, vendo as estrelas surgirem, frias e brilhantes. Que tipos de tolos seguem uma estrela? E que tipo de tolo segue esses tolos?

Lembrei da minha avó, nítida e clara e distante como um daqueles presépios dentro de globos de neve, estalando a língua diante da minha engrenagem defeituosa mais recente. — Um bom começo faz um bom final — ela dizia. — Gaste seu tempo e faça certo da primeira vez, e não terá que fazer de novo e de novo.

Me forcei a ficar de pé, jogando meu peso contra a vassoura. Os joelhos gritavam e as canelas latejavam. Eu oscilava sobre pés cansados, mas a muleta me dava o apoio que eu precisava.

***

Fiz um tempo muito melhor depois disso. A vassoura me salvou do gelo negro que parecia estar em todo lugar. Joguei o casaco molhado sobre o ombro––menos frio sem ele.

Depois do morro seguinte, encontrei–os.

A cadeira de rodas estava abandonada num enorme monte de neve ao pé do morro. Pelas marcas, parecia que eles tinham costeado a ladeira e deslizado num trecho de gelo no fundo. Aquele mesmo gelo tinha vitimizado um caminhão dos correios, que se enfiou de bico no monte. Atrás do caminhão, um homem num casaco preto puxava o parachoque com as duas mãos. As três crianças estavam ao seu lado, Maria com os braços ao redor de Lia, e Enzo pulando pra cima e pra baixo, a neve quase batendo no seu nariz.

— Crianças! Ah, crianças, achei vocês! — eu gritei, e acenei com os braços e ri, chorando abertamente, e correndo, deslizando morro abaixo, brandindo a vassoura como um louco. A neve subiu pela minha camisa e entrou na minha boca, e minhas canelas doíam e era bom, eu me sentia vivo, e não ligava mais porque as crianças estavam bem. No pé do monte sentei e solucei.

Maria protegeu Enzo de mim com o corpo. — Não cheguem perto dele! Esse é o Papai Noel de mentira. Ele quer nos levar de volta pro hospital.

— Ele não parece o Papai Noel — disse Lia. — Ele tem uma vassoura e nenhum casaco. E olha os sapatos arrebentados dele! — ela cobriu a boca e deu risadinhas.

Eu rolei a textura áspera da vassoura entre os dedos. Ela estava certa. Eu não era um santo velho e sábio. Eu era o tolo bem intencionado que seguia os sábios. — Você tá certa. Eu sou a Befana.

Enzo desatou a rir. A boca de Maria se abriu em surpresa.

Os olhos de Lia acenderam. — Ele é! Ele é a Befana! — e ela recitou,

”La Befana vien di notte

Con le scarpe tutte rotte

Col vestito alla romana

Viva, Viva La Befana!”

— Sim, é isso mesmo! — eu disse. — Sapatos arrebentados e roupas romanas, todo o pacote, essa é a Befana, essa sou eu.

O homem de casaco preto limpou as mãos na calça e me ofereceu um aperto de mão. — Cesare Palermo. Sou dos correios, e um pouco atrasado na entrega de hoje. Suponho que você seja do hospital? — ele era um camarada mais velho, talvez mais velho que eu, com cabelo e barba brancos.

— Sim, eu sou Nico Cinque.

— E você andou essa distância toda até aqui? Na véspera de Natal? — ele me olhou de cima a baixo, e depois riu. — Você realmente é a Befana. Aqui, vamos te aquecer. — Cesare me ofereceu seu casaco preto.

— Você tem certeza? — perguntei, hesitante apesar dos calafrios que me subiam pelos braços.

Ele apontou o casaco vermelho encharcado dependurado no meu ombro. — Dá isso aqui. Se você é a Befana, eu sou o Papai Noel. Ele é basicamente um carteiro, certo?

O casaco do carteiro radiou o calor residual do corpo pros meus braços. Pra minha surpresa, num segundo ele já tinha vestido e abotoado o casaco da fantasia. Ele ficava melhor como Papai Noel do que eu.

Tirei o gorro abandonado do meu bolso. — Você vai precisar disso pra completar o visual. Agora eu sinceramente espero que você tenha o meu pacote.

— Achamos! — disse Enzo, nadando pelo monte de neve até a frente do caminhão, onde um grande pacote embrulhado em papel marrom se equilibrava sobre o parachoque. Ele voltou pro grupo carregando–o nas costas feito uma formiga. O pacote parecia navegar sem auxílio pela superfície do monte de neve.

Li a etiqueta do endereço: Saskatoon. Saskatchewan. Canadá. Abri uma das abas manejando o meu canivete. Papel picotado saiu pelo buraco. Dentro, vários embrulhos de plástico bolha acolchoados entre doces cor de arco–íris com embalagens em inglês, que dei às crianças extasiadas. Abri um dos embrulhos e as engrenagens pularam pra fora. — Graças a Deus — eu disse. — É isso aqui.

Enzo gritou. Lia dançou. Maria não sorriu, exatamente, mas também não parecia brava. Decidi que era o suficiente.

— Ainda temos um problema — disse Cesare. — O caminhão. O motor foi pro espaço. Não acho que ninguém aqui tá em forma pra andar de volta até o hospital, especialmente não aquela ali — ele indicou Lia com um aceno curto de cabeça.

Entendi o ponto dele, mas todo o medo tinha acabado. Eu tinha a solução nas mãos. O que é um motor, se não o coração de uma máquina? — Você tá com sorte, Cesare. Eu sou um Engenhoqueiro. Eu conserto as coisas.

Minha avó teria me odiado por isso. Afinal, era uma violação flagrante do Código dos Engenhoqueiros. Mas eu era um velho; o que eles fariam, me despediriam? Me prenderiam, na minha idade? Eu aceitaria o risco. Nicola Sei poderia tomar conta da oficina no meu lugar.

Foi fácil trocar as velhas engrenagens de Enzo pelas novas. Ele sentou no capô do caminhão, balançando as pernas, e eu desatarraxei o painel nas suas costas e fiz a substituição. Suas engrenagens usadas não estavam em ótimas condições, mas elas funcionaram bem o suficiente pra se fundir ao motor e dar um tranco nele.

E foi assim que nós viajamos até o hospital em um caminhão com um coração de criança, madeira unida ao metal através da minha mágica. A equipe de segurança ficou boquiaberta quando chegamos em nosso veículo encantado, os portadores dos presentes de Natal: três sábios, um carteiro e um tolo bem intencionado.

Tivemos uma trabalheira danada depois disso, preparando Enzo e Lia pra transferência. O procedimento transcorreu sem o menor problema.

***

Era tarde, depois das dez da noite, quando a Dra. Silva e eu apertamos o botão do elevador. Vanessa parecia cansada mas satisfeita consigo. Ela tinha um pacote longo e estreito aninhando embaixo do braço.

— O que é isso? — perguntei.

— Ah, só o meu presente de Natal pra mim mesma, um pouco de vinho quente da Alemanha. Pensei que não fosse chegar a tempo, mas estava naquele caminhão que vocês resgataram. Ela virou o pacote nas mãos, ergueu uma sobrancelha. — Tá bom, não seja tão convencido. Eu admito.

— Admite o quê?

A Dra. Silva suspirou. — Tudo se acabou de maneira maravilhosa, não foi? Você teve o seu final de filme de Natal.

Todos os músculos e ossos dos meus dedos dos pés ao meu pescoço doíam como se o cortador de grama do Diabo tivesse passado por cima deles. Até mesmo no hospital eu usei a vassoura como uma muleta. Recusei a substituta adequada. Pensei na minha avó, em como ela andava pra todos os lados com uma bengala perto do fim da vida, aceitando o apoio de um bastão enquanto declinava uma mão ou ombro gentil. Acho que ela queria encurtar a distância entre a gente, mas nunca soube como. A dureza dela era o seu amor. Amor é que o você faz, eu acho.

— Dra. Silva––Vanessa––esse vinho seria muito bem–vindo na ceia de Natal da minha família. Se você não tiver outros planos, quer dizer — eu disse.

As linhas cansadas do rosto dela relaxaram num sorriso. — Eu gostaria disso, Nico.

Sim, vinho seria mesmo o ideal, eu decidi. Leite e bolachas pro Papai Noel, mas um bom vinho tinto pra Befana.