Uma História (Gonzo) do Natal – Epílogo
por Ludimila Hashimoto
Nascer é como ser sequestrado. E depois vendido como escravo.
Andy Warhol
Este, para mim, é o traço heroico derradeiro das pessoas comuns; elas dizem não ao tirano e aceitam calmamente as consequências dessa resistência.
Philip K. Dick
Dezembro de 2026
CÉREBROS IMACULADOS DÃO PRESENTES IMPECÁVEIS
Pablina estava deitada numa espécie de ataúde. Olhos fechados, face relaxada, o corpo induzido a um estado receptivo, efeitos do primeiro gole de um coquetel eletrobioquímico. O objeto a ser recebido tinha as dimensões da unha do seu dedo mínimo. Um homem de cabelo prata usava um macacão cinza claro que o camuflava no ambiente asséptico. Segurou o braço relaxado de Pablina e inseriu o dispositivo minúsculo na parte interna do pulso. A pele cedeu e a peça foi encaixada com precisão, como se Pablina tivesse nascido com um compartimento ali, preservado ao longo da evolução de sua espécie, aguardando o dia em que o homem se desequilibrasse sobre a corda bamba da preservação e caísse na rede de autodestruição.
– Chame a isso de celebração do nascimento, Pablina, a Sinistra – disse o homem no tom cerimonial de sua persona corporativa. – E nesta vida que começa, o seu propósito é servir. Por conta da ousadia dos seus atos, você foi escolhida. Na noite sagrada de união das famílias, a Cidade Sol lhe concede a honra de fazer parte de uma nova família, e expurgar a ameaça do seu passado. – Ainda segurando o braço amolecido. – Diga adeus ao arbitrário da sua loucura, aceite que a verdade lhe é inacessível. Reconcilie–se com as necessidades do mundo.
Homero afastou–se de Pablina, deixando para trás prateleiras incontáveis com outros esquifes como o dela. Neles também havia corpos que, desacordados, despediam–se de uma vida de desordem e multiplicidade de sentidos. Por um estranho encantamento tecnológico, os condicionamentos gerados pelas relações sinápticas mais intensas eram convertidos a um circuito sintético, apagando sua memória e transformando–os em autômatos orgânicos. Nessa noite sobrecarregada de simbolismos, sua arquitetura cerebral ajustava–se a um ordenamento inequívoco: purificar–se no serviço pleno à conveniência, à adequação e à utilidade.
Ao entrar na região do sensor biométrico da porta, Homero acionou o áudio com um arranjo para coral de Noite Feliz. Como chefe do Departamento de Engenharia Comportamental do governo, ele considerava a trilha prescindível para a execução da tarefa, mas seu chefe era afeito a elementos temáticos.
Novembro de 2027
CIDADES EXPERIMENTAIS E A ALMA DO NEGÓCIO
Isolada por uma parede de vidro inquebrável, mais uma Cidade Sol imperava invicta. À sua margem circular derramava–se a sua Cidade Lua, reconstruída na área pavimentada pela lama produzida e despejada anos antes pela Cidade Sol.
Esta Cidade Sol, ilha de luz cercada de lama, era governada por Alfio de Azarov, que, por sua vez, era o núcleo energético e a frágil promessa de exuberância da sua cidade.
No dia 28 de novembro, Alfio chegou ao gabinete e olhou à sua volta. Estava tudo no lugar. Esboçou um sorriso diante da harmonia do ambiente. Não seria considerado uma pessoa vaidosa numa análise objetiva de seu comportamento. Na parede do escritório, nenhum gif de sua pessoa. Apenas um pequeno porta–telas acima da mesa, onde passava um filme mudo de momentos felizes com a família. Tampouco se via estátuas holográficas – as indestrutíveis – em sua homenagem nas ruas ou repartições, como era comum para governadores de outras Cidades Sol. Não fazia questão de que seu nome fosse mencionado junto às ideias revolucionárias que sua mente trazia ao mundo. Não era escravo de veleidades pequenas.
“Minimalismo”, pensou com um suspiro ao ser sentado pela Thronus de camurça sintética. “A arte de eliminar o que não quero ver.” [Nota 1. Encontramos o aforismo gravado em seu glovetop, captado em nuvem.]
Uma coleção de sapatos versátil, cabelos bem cortados e coloridos e unhas sempre bem–feitas eram decerto elementos básicos para a composição da figura de um líder, mas o que lhe importava, o que lhe enchia de umidade os olhos, o que não podia faltar em casa, no escritório e nas salas de reunião era a Thronus, a cadeira inteligente do designer italiano Sigismondo Gismondi.
Tocou a mesa para falar com Homero, que acumulava os cargos de diretor de criação da Marketrix e chefe do DEC. Depois tocou no ícone do DEC.
– Homero, já estamos no Advento! Pronto para mergulhar na magia do Natal?
A voz sorridente de Alfio reverberou como uma irritação no estômago de Homero. Na sala ao lado, o chefe do DEC olhou para o cronômetro na base da tela em 180 graus que o cercava por completo pelo efeito da projeção em 3D. Faltavam dois minutos para o início da sua apresentação do lançamento da campanha do Natal 2027. Ele dormira bem menos do que o planejado na noite anterior.
Depois de anos criando campanhas de Natal para o governo, desta vez teve a criatividade e a concentração abaladas por uma inexplicável insegurança. O objetivo final para com os e–espectadores era sempre o mesmo. Por outro lado, ele sabia o peso de trabalhar num projeto durante oito meses, visando a aprovação de um único expectador obcecado.
A campanha transformava o Natal no que Alfio quisesse, de acordo com o que as novas tecnologias propiciassem e o que as próprias vítimas do Natal demandavam. As vítimas estavam dos dois lados. Homero se concentrava na demanda número um do chefe–cliente. Atender ao desejo dos cidadãos da Cidade Sol por um presente de Natal mais especial a cada ano. E ele mesmo era uma vítima em potencial.
Apesar do conteúdo preparado para a execução do projeto, Homero sabia que a sua atitude dali a um minuto não apenas lhe preservaria o cargo, mas a arquitetura cerebral.
Voltou a se concentrar:
– Bom dia, Alfio. Feliz Advento. Pronto aqui. “Magia do Natal”, as palavras do chefe ecoaram distorcidas no ambiente corporativo.
– Ótimo – a voz de Alfio chegou pelo fone sem fio de Homero. – Este ano, espere mais do que um feedback. Farei uma leitura de você. O Advento é o tempo de estarmos vigilantes, Homero. E, para você, é o tempo da esperança.
Pressionando as pontas dos dedos de unhas roídas, Homero massageou o ombro esquerdo com a mão direita, respirou fundo, corrigiu a postura, e viu Alfio entrar na sala e pôr os Oculus Khiasmos.
A Thronus foi o último detalhe checado por Homero. Alfio parou dentro de um ambiente verde–menta e semicerrou os olhos ao sentir a camurça sintética tocar a sua pele e os pontos de apoio de seu corpo. Relaxou instintivamente pés, pernas e quadris até ficar na posição ergométrica para a reunião que talvez fosse longa, mas que, para ele pelo menos, seria confortável.
Os dois, um pairando de pé e o outro na posição ergométrica para reuniões longas e confortáveis, encontravam–se diante do logo do governo. As palavras Cidade Sol na fonte arredondada, patenteada por Homero como New Sunny Times, subiam devagar, num dégradé que ia de amarelo–ouro ao laranja e a um vermelho–sangue que começou a escorrer das palavras, formando um mar que se metamorfoseou para formar as palavras Sol Invictus, o Nosso Natal 2027 – Você Também Pode Incorporar uma Família.
Alfio ergueu as sobrancelhas e o queixo, num gesto que Homero interpretou como receptividade. Mas o gesto fizera parte também, veio um flash da memória, do momento em que Alfio o dissuadira de pedir demissão. Convencimento mediante punição e ameaça, nessa ordem. A ordem inversa teria tido um efeito mais suave na psique de Homero.
As palavras se foram e os dois se encontravam agora numa sala dominada por um branco mate em contraste com o dourado cintilante de bolas de natal, guirlandas e estrelas cadentes arredondadas. Em seguida, estavam com o rosto muito perto de uma mesa, sobrevoando a ceia colorida, farta e rica em texturas, exalando um aroma agridoce. Homero congratulou–se por ter desistido do simulador storyteller. Sob o efeito de um filtro vibrante, uma senhora de vestido dourado era servida por uma senhora de avental branco opaco. Uma voz em off, firme e acolhedora, argumentou: Para não cozinhar, incorpore uma família.
Homero notou que a expressão facial de Alfio era de relaxamento. Os dois estavam agora diante de uma vendedora sorridente numa loja de brinquedos. Uma mulher de branco com movimentos robóticos saía da loja com sacolas cheias de caixas de tamanhos diversos. A voz em off argumentou: Para não estacionar, não se esquecer de nenhum presente e não ter que carregar nada, incorpore uma família.
A música de fundo, até então imperceptível, era um arranjo instrumental de Jingle Bells que ganhou um movimento crescente, chegando a um allegro maestroso, servindo então de trilha para uma coleção de situações em que membros hipnóticos de uma família incorporada tornavam mais conveniente a vida de uma família normal. Uns arrumando a casa, outros dois dando banho numa criança, enchendo a despensa, respondendo a e–mails, fazendo listas de compras. Uma mulher com brincos e colar de ouro e um vestido de tecido pisca–pisca saiu de uma das situações, caminhou até eles e argumentou:
– Se você deseja uma feliz incorporação, abra o seu coração para o anúncio das famílias dedutíveis. Na noite mais acolhedora do ano, receba a notícia que tornará a sua vida mais prática e cômoda. Abra os braços para os novos membros da família, um presente de Natal impecável.
Tudo ficou roxo em torno deles, o logo da Cidade Sol surgiu e começou a se pôr na linha do horizonte.
Homero passou a mão na barriga, o que o ajudava a respirar pelo diafragma, e flexionou os dedos do pé dentro dos sapatos. A cadeira posicionou Alfio de modo que o chefe do DEC não pudesse desviar do seu olhar facilmente.
– Não me arrependo de ter te deixado fora da incorporação da sua família. Um desperdício. Uma mente solar como a sua, extinta para a plena realização de serviços domésticos. – Alfio foi estendido pela Thronus, que o tocou com suavidade para apoiar coxas e panturrilhas e o pôs de pé. Saiu andando da projeção com as próprias pernas. – Só espero que não faltem presentes. Cuide bem da sua fábrica. Que valor teria um gênio escravizado? O que me alegra mais, no entanto, é que sem as minhas orientações, seu trabalho não teria poder algum.
A DIVISÃO E NOVOS CONTORNOS
Desde a crise ambiental de 2022, em poucos anos, o engodo do antropoceno tinha sido clarificado, tornando datado o epíteto das mulheres que vocalizavam o choque entre as margens e o centro, as antropopunks. Sua Poesia de Contorno pouco a pouco foi capaz de inspirar ações para atrapalhar o trabalho dos quadricópteros raptores na véspera do Natal.
Nas Cidades Lua, ninguém mais acreditava que a espécie humana como um todo levava o planeta à destruição. Mas enquanto o discurso oficial do antropoceno ainda era unanimidade nas mídias sociais, as próprias antropopunks acreditavam que seu papel era apenas florescer sem recursos, fabricar em silêncio, fazendo da sua vida um elemento que não neutralizava, mas coloria ainda mais a narrativa dos centros de poder econômico. Elas acabaram aprendendo, seguindo o fio de Ariadne, que não adiantava usar métodos tradicionais ou minimamente previsíveis. Elas precisavam agir como o espelho invertido do modus operandi da Cidade Sol.
As chamadas Cidades Sol eram as bolhas resistentes que pregavam a sua verdade, uma verdade dourada, invencível apesar dos fatos e essencial para a manutenção de algum delírio de grandeza personalizado. As contornistas não podiam contra–atacar assim.
Para que a Cidade Sol brilhasse no poder, a Cidade Lua fornecia energia intelectual de justificativa, em forma de um discurso contínuo de benevolência social.
Com a satisfação oral que os cidadãos da Cidade Sol tinham com a ideia de presentes de Natal que transcendessem os bens de consumo de sempre e a necessidade de aumentar a arrecadação de impostos, Alfio de Azarov recenseou as contornistas para unir a satisfação à necessidade. Matava ainda um terceiro coelho, ao apagar os focos individuais de rebelião.
Apenas em 2019 chegou a haver 530 contornistas sob o olhar atento da agência de inteligência do governo. Em 2026, o número chegava a 2048. Entre elas, Kenia, a Nervosa, e Pablina, a Sinistra – participantes ativas do outro lado da festa. Seus nomes estão na História do Natal, neste último capítulo, como parte da perversão que extinguiu a festa sagrada das famílias.
QUANDO NÃO HÁ PROGRESSO À VISTA, TENTE BOIAR SOBRE O ABISMO
O Advento aqui era o período de racionamento de comida, água e energia elétrica.
Temos um relato do dia 2 de dezembro. Na Cidade marginal obscura, ofuscada pela Cidade central, desespero era estratégia no Observatório do Sol, na cobertura do prédio mais alto da Cidade.
Kenia usava quimono de matelassê preto e maquiagem de kabuki. O suor derretia a maquiagem pelas bordas. Ela gostava de parecer um fantasma, uma máscara flutuante no meio do vapor dos cachimbos que sua família pitava à noite. Família de mulheres que tinham um objetivo em comum. Bastava estar decidida a neutralizar as ações de Alfio e Homero para fazer parte da família contornista.
– A coleta de presentes vai ser mais violenta este ano – comentou uma delas, caminhando até os fundos do observatório, um vão que tinha três vezes a sua altura. – A perda de Pablina me diz que estimamos mal os nossos limites.
As outras também se aproximaram da parede imaterial entre elas e uma visão privilegiada da Cidade Sol.
– Este é o ano de abraçar o demônio – disse Kenia, chegando aonde acabava o chão. – Consegui bugar o sistema de segurança da informação da Marketrix. Cheguei ao contato de Homero Kubo. – Kenia olhou para as outras, esperando uma reação estrondosa que não veio. Bufou.
– Ainda não estamos preparadas pra bater de frente com eles – disse Leona. – Temos que montar um exército, treinar táticas, surpreender o Bom Velhinho.
O Bom Velhinho era o nome da frota de quadricópteros que coletava a matéria prima na Cidade Lua para os presentes a serem fabricados na Cidade Sol.
– Surpreender, sim – concordou Yoko, com o rosto voltado para as luzes distantes, do outro lado da vidraça. – Mas exército, treino, bombas é usar a mesma lógica deles. É o contrário de surpreender. Temos que garantir que não estejam preparados pra nossa abordagem.
– O único caminho é nos antecipar e criar espaço pra hesitação de Homero. Não é ele quem supervisiona todo o processo de rapto e incorporação? O cara domina os procedimentos técnicos, coordena a coisa toda. De uns anos pra cá, soube por uma fonte confiável que começou a ter pesadelos com todas as noites de sequestros. E a hesitar. Pra prender o rabo dele, Alfio de Azarov levou a família do cara.
– Você vai pedir com jeitinho e ele vai se tornar nosso aliado? – zombou Leona. – O cara é um demônio. É dele que vem a fúria das invasões.
– Não. Um anti–aliado – corrigiu Kenia, sentando–se e deixando as pernas penduradas no vazio. A vertigem apaziguava a ansiedade de se fazer entender. – Ele é violência e dúvida. Alguém tem que encarar a fúria e direcionar a influência dele.
Sua confiança vinha do fenômeno inexplicável que fazia com que certas pessoas parecessem mais passíveis de conexão. Anos atrás, quando teve contato com o espião, notara essa espécie de permeabilidade interpessoal.
Kenia alucinou que umas das pontes que via lá embaixo era uma língua que ia dar na base da alma.
– Você vai entrar em contato? E dizer o quê? – perguntou Yoko
– Encarar literalmente. Só o tubarão me engolindo pra ver direito como ele é por dentro e … – Kenia dirigiu um olhar enfático para o ouvido de Yoko que estava com o fone, esperando que ela entendesse o motivo da interrupção. Ela mesma a havia alertado quanto à reciprocidade contagiosa dos bugs de segurança. – Vai passar esse cachimbo?
As mulheres silenciaram os pensamentos com a destreza de iogues e passaram a pitar em silêncio. Neste dia, apenas quatro delas se reuniram. Ficaram sentadas lado a lado, com as pernas balançando sobre o abismo. Por alguns minutos o medo das limitações humanas deixou de existir.
PONTES INTERROMPIDAS
Kenia estava sentada na ponte que ela mesma construíra com Leona e Pablina sobre o que restara do rio de lama tóxica. A ponte era uma meia–lua de treliça de bambu, interrompida pela parede de vidro inquebrável. Muitas outras com o mesmo formato contornavam a Cidade Sol, dando a impressão a quem olhasse do alto de que as pontes amparavam o vidro, quando o que acontecia era o extremo oposto, uma destruição disseminada. Era a destruição do muro de vidro o motivo da existência dessas pontes prestidigitadoras.
No ponto mais alto de uma delas, acima do nível do solo da Cidade Sol, ela parava todos os dias para olhar pela vitrine o outro lado da vida. Sentada, imóvel, uma sola da sapatilha de lona contra a outra, virava uma fotografia de si, a pele refletindo a luminosidade do instante, o afromoicano estremecendo e saindo de foco quando um vento passava. Agora, sendo dezembro, a vontade de avistar Pablina se somava à raiva, seu maior talento.
Leona estava na extremidade interrompida da ponte, recarregando o reservatório com o fluido corrosivo em contato com o vidro, na altura do solo da Cidade Sol. O improviso foi o que nos salvou neste ano.
– Você vem aqui todo dia? – Leona perguntou.
– Em horários diferentes.
– Já viu alguma coisa interessante?
– Eu vejo o contraste entre as pessoas dedutíveis e as pessoas que recebem o desconto. As escravizadas parecem opacas, movimentos meio sonâmbulos. Parece que tem um círculo invisível em torno delas que os outros não podem penetrar. Já as solares parecem tilintantes, reluzentes, talvez até felizes. Mas os dois grupos parecem ter uma coisa em comum que eu não sei definir. Uma espécie de cegueira. Olhos vidrados e opacos de uns, olhos vidrados e cintilantes dos outros.
– Eu vi Pablina – contou Leona.
– Como? Eu nunca consegui – Kenia sentiu um calor interno, como se a possibilidade de recuperar a amiga fosse real a partir daquele momento. Sua vontade era um calor intenso, também capaz de atiçar um impulso de destruição.
– Eu estava consertando o reservatório de uma outra ponte e ela estava levando um cachorro pra passear. Sozinha.
– Justo ela que nunca teve cachorro. Cena estranha. Consigo imaginar Pablina deixando um gato sair pra passear, no máximo. – Kenia voltou a se manter atenta, afastou a vontade de sair marretando o vidro e matar o governador, e sorriu. – O que te pareceu? Dá pra dizer que ela está bem?
– Pode ser que esteja bem. Mas não parece mais pessoa, não.
Kenia sentiu o corpo derreter. Depois de séculos em que seus antepassados criaram e carregaram armas e armadilhas para morrerem na praia, o controle mental era única arma que lhe restara. Sofria por ter de se conformar com uma arma tão impalpável, mas no aniversário de onze anos da primeira ponte, ela não iria, num lapso de frações de segundo, cair na tentação de atacar um fantasma com as próprias mãos em garra.
Homero Kubo e seus presentes natalinos eram um fantasma que era preciso incorporar. E, para isso, uma aproximação era inevitável, e imprevisível nos desdobramentos.
Desceu a ponte como se estivesse fora de si e do seu nome. Nunca estivera tão livre da maldição da super–heroína que recaíra sobre Pablina. Leona olhou para ela.
– Já vai?
– Me misturar lá na feira – disse Kenia. – Eu preciso contar pra uma única pessoa os meus planos pra este Natal. E ele pode não gostar.
A TRANSCENDÊNCIA DO DELÍRIO
Homero sentia frio. Esfregar as mãos tornou–se cacoete. As mãos continuavam geladas, mesmo quando ele dispensava o segurador e levava ele mesmo a caneca de chá quente à boca. Teve a sensação de estar perdendo as forças, e não podia perder nada. O importante era entregar o produto e causar um orgasmo de satisfação no cliente.
Kenia andava, ora rápido, ora mais devagar, em ritmos influenciados pelo caos da feira de trocas. Preparou–se para localizar o fone direto de Homero, dado programado para chegar ao fone dela através de Berimba, uma fonte conhecida que traficava contatos entre as Cidades Experimentais. Focou o olhar nos elementos à sua volta enquanto aguardava o dado. Banquinhas de roupas enfileiradas de um lado, os homens da tenda de chás gritando para a banda que tocava um ska–reagge em francês do outro lado. Ela reconheceu, pela letra, que se tratava de uma versão de Será que é Isso que Eu Necessito. Pessoas à frente e atrás, crianças comendo oniguiri sobre tapetes em forma de rinocerontes, elefantes e outros animais extintos. “Leona mandou bem no biofuton”, pensou. E continuou andando, enquanto aguardava o sinal de Berimba.
***
– Homero – rápido demais, como se já estivesse com o fone no modo de receber ligação.
– Meu nome é Madeleine Nervozan. Estou escrevendo uma História do Natal e acho que você é um entrevistado essencial
– Seria um prazer ajudar – disse Homero, inferindo, mesmo no modo somente áudio, que a ligação só poderia ser de alguém da Cidade Lua. – Você é daqui?
– Você acha que uma entrevista de corpo presente seria executável?
Num tom que a ela soou cerimonial, Homero respondeu, considerando respondida sua pergunta:
– O governador espera que eu dê entrevistas para divulgar a campanha de Natal. Está na agenda desde o início do Advento. Podemos postar a entrevista antes da conclusão da história? Aguarde um momento, por favor. Preciso retornar daqui a cinco minutos.
A pulsação cardíaca acelerada exigiu a pausa. Ele sentiu uma vontade inexplicável de vomitar quando a mente começou a girar na tentativa de avaliar o potencial estratégico do contato.
Poderia ser uma oportunidade de entrar para a história, ainda que a história restrita de uma única data comemorativa. Mas era a data mais importante do ano. No mínimo, capitalizaria a divulgação da campanha. Poderia ser um golpe, sabendo–se que a rebeldia das contornistas não parava de inovar em seus métodos. Como os cidadãos da Cidade Sol não produziam textos com o mínimo de originalidade e influência, provavelmente teria de se aproveitar, inclusive sob o risco de se perder.
“Me perder agora seria perder o melhor emprego que eu poderia conseguir na vida e, ao mesmo tempo, perder a individualidade. Me perder é atraente, por outro lado. Oportunidade de cometer um crime contra o criminoso que me ameaça. Mas o criminoso sou eu.” [Nota 2. Palavras do relato obtido na entrevista, realizada em 30 de janeiro.]
– Sim. Temos urgência, portanto? – Kenia arriscou apressar a resposta, tirando proveito da tensão que emergiu no silêncio. Era um silêncio que vinha da camada sempre tensa que sublinha cada passo de todo ser senciente.
– Nos encontramos pessoalmente ou por aqui mesmo?
– Por aqui, não. – Kenia abriu a captação do seu fone para que chegasse a ele o som da feira. – Aqui.
A ânsia passou. Homero notou que transpirava na testa. Ao ouvir a música e os gritos desorquestrados da feira de trocas, vieram–lhe imagens de quando visitara a Cidade Lua para conhecer os hábitos e esconderijos das lendárias antropopunks. As casas abertas ao fim da tarde, as portas fechadas grafitadas com desenhos translúcidos, a sinceridade tocante dos rostos, a sedução de uma verdade arrebatadora atingindo seu corpo contra a sua vontade. A segurança do vidro que agora os separava.
Passou a mão na testa, o coração e as veias pulsando mais forte, a mente sem saber por quê, o corpo sabendo. A ligação de Kenia eram muitas coisas condensadas. Ele vasculhou essas coisas rapidamente. Madeleine? Com a ansiedade indo e voltando em intervalos cada vez menores, crescia sua insegurança.
– Combinado. Envio data e horário em seguida. Aguardo o trajeto – ele se ouviu responder, sem a noção de quantos segundos ela aguardara a resposta em silêncio.
E encerraram a ligação.
Homero gostava de escrever. A mera visão do caderno ao lado da caneta era capaz de aquecer alguma coisa nele. Era mais transitório e mais imediato do que digitar. Escreveu:
Odeio com todas as dobras das minhas vísceras o indefinível. As coisas indefiníveis me arrancam a face. Perdi a noção de quem eu era quando deixei, por alguns segundos, que aquelas mulheres esquisitas me afastassem das necessidades do mundo. Insuportável aquele olhar de quem acha que acolher é fácil.
Mulheres construíam com instrumentos pesados as vigas flexíveis de bambu. Conversamos com a música distorcida ao fundo. Uma delas tocou meu braço. Sem motivo. O toque da mão falava o indefinível. Inconveniente. Lunáticas. Olhos transparentes. Subsistindo na lama. Sub–existindo como se se bastassem. Seu presente é parco. Seu destino é a escravidão. Por que não se desesperam? Não matam o primeiro solar que aparece? Ainda iam querer escrever uma história da data que acaba com a liberdade que lhes resta? Pouco provável. Tudo mentira. Uma reação, um plano dos elementos rebeldes. A hipótese mais segura. É por esse pântano que eu vou caminhar. Entrar na lama. Ser corajoso e atravessar o fosso do meu castelo.
Depois de escrever no caderno, lembrou que quase ficara na Cidade Lua. O que o fizera voltar, sua família, seu emprego dos sonhos, eram agora uma sombra. E como a desenhada sobre a Lua pela Terra, crescia até engolir a luz.
***
Homero começou a receber o trajeto até Kenia pelo fone faltando quarenta minutos para a meia–noite de cinco de dezembro. Perguntava–se o que o esperava. Uma emboscada, uma armadilha ludita feita com bambus, rebeldes com facões, torturas medievais, bombas caseiras ou uma mulher maquiavélica sozinha entre livros e anotações.
Dentro do galpão da biblioteca, entre mesas de leitura e estantes com livros de papel esgotados, Kenia sentou–se no chão para respirar. Lembrara–se ainda mais claramente da pessoa depois de encerrar a ligação, o espião se passando por turista solar.
Sua mente teria de permanecer serena, ou pelo menos controlada o suficiente para evitar que ela pulasse na jugular do chefe do DEC, exigindo que ele desfizesse os estragos. Conexão, precisava encontrar um ponto de conexão com o cara. Encará–lo sem pressa.
Quando ouviu passos, foi até a porta. Abriu. Sentiu cheiro de gel e perfume. Depois de olhar nos olhos de Homero, deu as costas, dirigindo–se ao centro do galpão, onde posicionara dois bancos de papelão.
“Um dia não vai sobrar mais ninguém”, foi o último pensamento de Homero antes de se posicionar ao lado do vão da porta.
– Serei direto e eficiente. – Ele deu passagem a uma explosão de setas incandescentes que invadiu o galpão. Tudo que a cabeça minúscula de cada seta tocava iniciava um micro–incêndio, que seguia correndo fino pelo telhado do galpão, na ponta de um banco, em vários pontos das estantes de livros, no chão. O som era harmonioso, agudo no voo dos projéteis finíssimos, grave nos múltiplos pontos de combustão, incessante. Um gás era liberado por dispositivos de bioquímica digital. Nada fazia sentido. Som e fogo e vulnerabilidade.
Kenia deixou escapar um gemido de repulsa que antecedeu a aceitação do que via. As setas entravam laranja e eram vermelhas no meio do voo. O gás aqueceu seu corpo, e ela sentiu o peito abrir. O avanço do fogo era lento, mas ia por todos os lados. Kenia sentiu náusea, depois apenas ardor na garganta, sem conseguir falar, só a garganta ardia, entre setas em câmera muito lenta, quase imóveis, belas, sem nenhum objetivo senão ser parte da explosão.
“Sei a sua situação, agradeço por ter vindo, mas é do seu interesse”, a fala decorada de modo involuntário foi alucinada por ela, em três explosões heptassílabas de fogos de artifício no teto do galpão.
Antes de apagar por completo, ela viu os olhos dele crescerem milimetricamente sobre ela. Nenhum dos dois havia blefado, buscavam alguma confirmação da intensidade das implicações.
– Te vejo à noite no dia vinte e quatro – ele anunciou como se falasse para ela. O interlocutor pretendido, porém, estava do outro lado do fone de ouvido. “Nos vemos amanhã”, pensou.
A CLAREZA ESTÁ DO OUTRO LADO DA RAIVA
Kenia estava deitada numa espécie de ataúde. Olhos fechados, face relaxada, o corpo induzido a um estado receptivo. Homero estava com o macacão cinza claro que o camuflava no ambiente asséptico. Segurou o braço mole de Kenia, e ela abriu os olhos, erguendo o tronco num movimento brusco.
– Estou ajustando a sua alimentação intravenosa – disse Homero. – Preferi ser entrevistado aqui. Esqueci de avisar.
Kenia arregalou os olhos e sentiu a mão direita formigar.
– É que os adultos estão ansiosos por um belo presente como você. Tive que garantir.
– Olha, eu sei que você não aguenta o papel de vilãozão. Mas está criando justificativas pra ser fantoche de tirano.
– A essência do meu trabalho é trabalhar duro. Eu sou incansável. Nós interrompemos a vida de algumas pessoas, eu sei. Mas o nosso sucesso é inquestionável.
– E essa é a sua motivação?
– Minha motivação é ter um trabalho, um salário melhor do que nos meus sonhos. E merecer. Não sinta inveja por não fazer parte.
– Você viu como é a vida do outro lado.
– Desculpe, mas é uma vida besta.
Kenia sentiu uma irritação nascer e, antes que pegasse fogo de súbito, voltou para dentro do esquife. Lá de dentro:
– Você desejou ser promovido a chefe dessa merda – apontando com a mão aberta para as estantes de túmulos. – Mas sinto cheiro de desespero. Se precisar de mim, me acorda. Enquanto isso, não toca nas minhas sinapses.
– Vocês se acham autossuficientes. Mas dependem de nós. Cuidamos de vários serviços para vocês. Inclusive saneamento básico. Sabe por que merecem ser sequestradas? Porque o Natal é tempo de gratidão. E é isso o que lhes falta.
– É? Você sabe tão pouco de nós. Se ficasse um pouco mais, veria a violência também pipocando ali. Homens se socando por nada, casais berrando desesperados nas madrugadas. É uma vida besta mesmo. A nossa violência foi o início da família contornista, não vocês.
– Desculpe, mas vocês são ridículas. Antropopunks são machistas. Um bando de miçangueiras que querem ficar só com os privilégios que dizem ser dos homens. E a sua total falta de reação agora é a prova de que você é uma psicopata.
Kenia se revirou no caixão. Prestes a sair dali e mostrar a reação que ele esperava:
– Você está se ouvindo?
– Não está nervosa, Kenia? Não foi assim que suas amigas descreveram você. Amigas entre aspas. Você estava me esperando para uma emboscada, e elas deixaram.
Kenia respirou. Homero não era capaz de torturá–la no nível que desejava. Bastava deixar ele falar e visualizar as pontes. Ela acreditava que as pessoas estavam prontas para escapar da hipnose coletiva. Mas não só de um lado da vitrine. Todas de uma vez.
Homero se aproximou do caixão. Ficou com o rosto acima de Kenia, apontando um indicador rígido como aço a três centímetros do nariz dela. E falou com uma energia intensa como o ódio, talvez o outro lado da insegurança.
– Você não é nada além de uma louca que quer aparecer, Kenia, a Nervosa. Você quer o seu nome na história. Até a tal de Leona disse que você era… qual foi mesmo a expressão? Frívola. E incapaz de amar. Sua própria irmã, entre aspas.
Kenia se pegou tentando imaginar Leona dizendo algo assim, e quando ela lhe teria dito aquilo. Exímio torturador, concluiu.
– É? – respirou.
– Olha o olhar de psicopata. Sem reação. Seja menos insegura. Aceite o seu destino, sua machista – a voz dele tinha o ímpeto de um vulcão. Ela sentiu os perdigotos. – Quer uma vida fácil. Que se adeque à sua preguiça, menina mimada. Nunca deu duro na vida. Nem sonha o que é a pressão de um cargo de chefia no governo. O seu trabalho atualmente deve ser ficar escrevendo essa história que nunca terá credibilidade. Gonzo, ou seja, palhaçada. E poesia, perda de tempo. Coisa de gente que pode se dar ao luxo de ficar de bobeira.
– Você pode falar mais baixo, não sei, tentar um diálogo…
A alimentação intravenosa estava insuficiente. Ela reunia todas as forças que já havia sido capaz de acessar ao longo da vida, desde a infância.
– Falar mais baixo? Olha só, você só se preocupa com o que os outros vão pensar. Está vendo? Eu vou falar alto, eu tenho esse direito. Você é fútil, por isso nem sequer deve ter um plano objetivo pra este Natal.
“Os planos pro Natal!”, ela pensou, e no mesmo instante:
Os braços de Kenia pularam no peito rígido de Homero como duas molas de elasticidade proporcional à energia acumulada pela fúria do mundo.
Ele recuou, mas não devido ao empurrão. Queria demonstrar indignação, o quanto o ofendia o gesto brutal de alguém que lhe devia submissão. Expressão de choro contido.
Kenia estava ofegante. Por que reagira da pior forma depois de anos de treinamento da mente, ela se perguntava enquanto ouvia os passos de Homero se afastando. A porta se abriu e ela passou a escutar a versão para coral de Noite Feliz.
Bufou. – Merda.
O LIMITE DOS INCANSÁVEIS
Após uma reunião longa e desconfortável para convencer Alfio de que raptar Kenia antes da ação do Papai Noel fora a melhor estratégia, argumentando que ela atrapalharia o trabalho de coleta dos presentes, Homero enfurnou–se na sala de arquitetura.
Movido pelo pavor da insegurança que corroía seus pensamentos, dias a fio, buscou uma forma de anular o condicionamento artificial dos membros das famílias incorporadas. Apenas para se sentir num controle maior da situação. Talvez chantagear as contornistas. Sob pressão da proximidade de mais uma noite de sequestros, submerso em delírios de grandeza, conseguiu chegar à fórmula de retrocalibragem dos autômatos humanos.
Já era vinte de dezembro quando ele se viu num acesso de fantasiar o poder que teria se derrubasse Alfio, causando uma reviravolta no seu esquema temático bobinho. Poderia virar governador. O empurrão de Kenia doía profundamente, como um desafio para ousar mais na tortura. No entanto, a ideia de milhares de pessoas retomando a capacidade de pensar de súbito lhe parecia tão difícil de manejar quanto seguir com o plano de sempre. Paralisado pelo medo de um estado de descontrole de dimensões incalculáveis que independia totalmente das suas ações e sentindo desejo de destruição, voltou à Kenia.
Na sala dos esquifes, ajustou a droga intravenosa e aguardou seu despertar.
Kenia ergueu o tronco, alarmada, e desenganou–se ao lembrar onde estava – o lugar de onde ainda não era possível agir.
– Não dá pra enfrentar tudo sozinho – ele não acreditou no que estava dizendo. Ninguém acreditaria.
– O quê? – Estranhou o tom de guarda baixa e saiu da caixa.
– O que você quer? Quais são os seus planos? Reverter o processo agora poderia causar uma revolução sangrenta.
Kenia fechou os olhos e esfregou a testa, como fazia quando perdia a paciência.
Ele queria reverter o processo? – Olha, eu não consigo não ser contaminada pela sua indecisão. Você é muito esquisito, sinistro. Sinto que estou ficando nervosa e quero que você faça silêncio.
Silêncio tumultuado.
– Sabe as pontes que construímos até o vidro?
Ele sentiu medo dela. – São belas.
– Calado. – Socou a caixa em que estava apoiada. – Nós estudamos a estrutura do vidro inquebrável. Observamos um processo parecido com a oxidação nos pontos da parede que ficaram em contato com o rio de lama. Descobrimos que a parede tem uma porcentagem de ferro, e a lama, uma parte de sais, monóxido de enxofre e outras coisas que aceleram a corrosão. Permaneceria intacta se pintada, mas a transparência literal é uma das obsessões de Alfio. Nossas pontes de bambu não são decorativas, Homero. A extremidade interrompida pela parede contém um preparado que degrada o vidro inquebrável. Demorou, mas já temos inúmeras pontes que terminam numa camada fina em que dá pra abrir uma cratera com um murro.
– Não reverter o processo, também – ele concluiu sozinho o raciocínio que precedera o silêncio tumultuado.
PRESÉPIO ARMADO
– E nós aqui acreditando em Papai Noel. – Numa inversão absurda da pessoa que até então parecera nítida diante dela, Homero conseguiu dizer algo tão besta após sentir a intensidade das implicações.
– Nossas famílias estarão prontas. – Kenia sentiu um tremor elétrico na mão que socara a caixa. Pequena vitória, estava criado o espaço para que a hesitação crescesse. E cresceu bonito. – Sabe do que eu mais gosto do Natal, Homero? – Ouviu apenas um gemido involuntário em resposta. – O Natal é compulsório. Leva todo mundo, eu, você, como um furacão. Só que uns aterrissam em segurança, outros não sabem se vão sair vivos do outro lado.
24 de dezembro – O VESPEIRO
Entre paredes brancas cobertas por bolas e guirlandas douradas, famílias reunidas aguardavam o anúncio de quem receberia novos membros. Diante de telas maiores do que as salas deveriam conter, a transmissão de uma apresentação ao vivo enquadrou o rosto de Alfio.
– Acredito que todas as famílias das Cidades Sol e Lua estejam preparadas para o grande momento da noite. Um presente mágico. – Ele lia o texto do teleprômpter com a confiança de quem pisava num chão de concreto. Não hesitou. Não desconfiou que o concreto era um cadafalso imaterial. – Este Natal será único. Acreditem também. Seguindo a contagem regressiva, quando der a meia–noite, veremos algo grandioso. Não resistam, não impeçam que o irmão e a irmã ao seu lado corram com braços abertos de montanhas, sorriam com a boca de um oceano, ou comecem a vomitar lava. Se eles podem, vocês também. Sejam montanhas e oceanos e vulcão. É o que a Terra abarca. – Como em todos os anos, ele não sabia o que estava dizendo. Apenas lia alto, concentrado na entonação mais convincente possível.
Na sacada de um apartamento, em meio a pisca–piscas cadentes que simulavam a neve, Pablina abaixava–se para limpar o chão do xixi do cachorro.
– Dez! Nove! Oito!
Ela sentiu uma pressão minúscula no pulso. O dispositivo começava a executar um novo comando.
– Sete! Seis! Cinco!
A sala estava cheia. Entre faces coradas, diversos rostos opacos começavam a ganhar cor. Por toda a Cidade Sol, os membros incorporados retomavam a capacidade de pensar. Homero havia chegado ao limite. Depois do limite, não havia nada para ele além da cara de Kenia.
– Quatro! Três! Dois!
Um.
As reações foram tão variadas quanto desordenadas. Os movimentos tinham o peso capaz de romper a tradição que era uma represa feita para reter grandes quantidades de ineditismos. Em milhares de corpos até então mecânicos, a alegria de poder não querer era irrefreável.
Alfio notou apenas uma vibração sutil no ar que poderia ser apenas a grande euforia multiplicada que ele previra. Voltou a ler o texto, escrito por Kenia quando ela conseguiu retomar a própria voz diante do fantasma. E foi assim que o governador foi se perdendo, por não saber improvisar nem calar:
– Vocês sabem para onde ir. Vocês sabem. A vida bate no seu pulso. Derrubem as vitrines, elas já estão frágeis demais. Vocês, cada mulher, homem e criança, vocês serão a peça que faltou, durante esses anos, nas pontes que desenham juntas os contornos da nossa Cidade de penitências. Levantem a cabeça e corram sem se preocupar. Precisamos que os loucos sejam absolvidos, sejam do Sol ou da Lua. Vocês estão sufocados de tantas vozes. Corram, aprendam a falar. Precisamos fazer a fronteira ventilar.
A minha posição era vantajosa para testemunhar o movimento da multidão. De cima da ponte que construímos, estendi a mão para uma mulher que chutou o vidro sem pressa, celebrando a novidade de não ter que se esconder nem festejar. Uma mulher que poderia ser Pablina, mas era puro anonimato.
Alfio terminaria com um “Feliz Natal!”, mas o que era Natal até então passou a ser o rito sem nome, uma lacuna latejante, o simples escancarar das conexões interrompidas.
Ludimila Hashi é uma carioca paulistana que se envolveu mais profundamente com a ficção científica e a fantasia ao traduzir romances dos gêneros. Formada em psicologia pela USP e em tradução e interpretação pela Alumni, atua de modo constante no mundo literário como mais uma amante da palavra.