Um Conto de Nano Natal

por Jana P. Bianchi

Doeu quando o monitor cardíaco gritou o fim agudo da vida do doutor Felipe. Doeu em mim, quero dizer. Espero que não tenha doído nele. Confesso que pensei em perguntar quando ele voltasse. “Morrer dói?”, eu perguntaria, e, se tudo corresse como esperado, ele provavelmente franziria aquelas sobrancelhas arrepiadas, loiras–meio–grisalhas, e responderia com uma risada retumbante e alguma piadinha resgatada da base de dados do processador de dados implantado no cérebro. Mas eu só pensei em perguntar, depois desisti. Não seria mais ele, afinal, e na verdade eu não sei se queria mesmo saber sobre as dores de se morrer. Muito menos sobre as dores de ser trazido de volta à vida.

Senti o aperto da mãozorra dele afrouxando dentro da minha, e então comecei a acompanhar a queda da saturação. Noventa, oitenta, cinquenta por cento. Depois de confirmar a parada pela ausência de movimentos torácicos e sinais de inspiração e expiração, disparei o timer. Segundo o próprio Dr. Felipe, cinco minutos deveriam ser suficientes para garantir a morte encefálica.

Morte encefálica. Fechei os olhos e senti o mundo rodar por um instante. Discutimos muito sobre as alternativas que pudessem evitar aquela longa expectativa mórbida pelo fim, mas o doutor Felipe tinha razão: induzir uma parada cardiorrespiratória ainda é o jeito mais seguro de garantir a extinção das atividades cerebrais. Provavelmente, sempre será. A ciência corre muito rápido para de preservar a vida, mas estagnou na poça fedida e ingrata que é fazê–la parar. Não sei se faz tanto sentido se você pensar bem — não no mundo em que vivemos hoje —, mas diz muito sobre o homem e sua vontade de perdurar.

Abri os olhos quando o alarme do timer tocou. Parei o barulhinho irritante com um gesto remoto da mão e bati duas palmas pra ligar o gravador. Talvez estivesse impressionada, mas doutor Felipe parecia definitiva e gloriosamente morto, os lábios entreabertos já assumindo a cor pálida da barba e do bigode. Em uma movimentação tácita, quase ensaiada, Florência e Miguel começaram o protocolo para atestar o fim. Com a voz controlada pelo hábito, foram listando os sinais: pupilas sem reação, reflexos oculocefálico e córneo negativos. Nenhuma reação à água gelada despejada no ouvido, respiração espontânea ainda totalmente ausente, temperatura normal. Nenhum reflexo de nenhuma natureza.

“Hora da morte…” Miguel fez uma pausa e esperou o ruído que indicava o início da transcrição de voz na ficha digital. “Uma hora e cinquenta e um minutos da manhã de primeiro de Dezembro, doutora Isadora.”

Concordei com a cabeça e, em um gesto automático, chequei o relógio preso na parede do quarto, aquela velharia analógica brega que tocava os cantos dos passarinhos a cada hora cheia. Velho figura.

Enquanto a equipe despia o torso do cadáver do doutor Felipe, virei a cadeira de rodinhas e olhei pra trás. O ambiente hospitalar acabava ali, nos limiares da cama. Um passo além já começava o hostil território das ciências exatas, a parafernália eletrônica se espalhando para todos os lados, clamando seu espaço como um fungo metálico cheio de luzinhas e sons.

“Como tá o processador?” perguntei, tentando soar eloquente.

“Em perfeitas condições, doutora, já pedi um diagnóstico. A aplicação de start up tá prontinha, agora é só fazer o upload pra lá”, disse Ada, digitando em um teclado invisível os códigos que só ela podia ver. Era difícil ver a expressão da menina debaixo dos óculos de interface que a faziam parecer um abelhão, mas acho que ela sorria, empolgada.

“E tudo pronto com o software de ativação”, disse Luna, mirando um par de monitores convencionais. Sob um dos monitores, alguma alma brincalhona havia colado uma toquinha vermelha de Papai Noel. Desviei o olhar.

“E os nano?”

“Prontos também,” disse Florência, levantando a pistola metálica como se fosse uma atiradora do bando do Lampião. Puxou a mangueira para confirmar a conexão ao tanque de repouso dinâmico dos robozinhos e fez um sinal com a cabeça. “Quando você autorizar, Isa.”

“Autorizado”, confirmei.

Com uma confirmação séria da cabeça, ela caminhou até a cama, apontou a pistola para o largo tórax nu do doutor e apertou o botão auxiliar. O sistema de visão triangulou as possíveis posições de inserção e, com base na topografia do corpo, logo um pontinho de luz azul projetado pelo apetrecho indicou o lugar escolhido para a aplicação.

Flor segurou a pistola com as duas mãos e, com um golpe certeiro, cravou a pistola no meio do peito do doutor.

“Nano robôs inseridos.”

“E… ativados.” Luna apertou um botão do micro controlador de mão, os olhos fitando os monitores múltiplos. “Os bonitinhos já estão nadando como uns peixinhos.” Estalou os dedos e apontou o indicador na direção de Ada.

 A moça confirmou com a cabeça. “Então… Foi.” Fez um sinal enigmático com as mãos, dando algum comando. Coisa de programador. “Start up do hospedeiro iniciado.”

Quando imaginava aquela cena na minha cabeça, o meu eu do futuro próximo balançava a cabeça e ria do nome tonto que o doutor havia insistido em dar àquela operação, fazendo jus à sua fama excêntrica na comunidade acadêmica. Mas, quando a hora do registro chegou, eu já estava desconectada da realidade havia muito tempo. O plano estava mesmo em andamento. Doutor Felipe estava morto, uma parada induzida em um horário marcado. Seria o fim da minha carreira se alguma informação vazasse dali. Provavelmente seria o fim da minha vida, já que eu seria presa. Era bom não estar ligada ao monitor cardíaco, assim podia fingir que estava me sentindo suficientemente bem.

 “Projeto ‘Noite Feliz’ iniciado,” falei, e até senti uma vontadezinha de rir que logo passou. Mirei meu relógio digital. “Hora da ativação… Uma hora e cinquenta e nove minutos.”

Então o tempo esticou e me prendeu na eternidade da espera. Não saberia dizer o quanto demorou, mas, pensando em retrospecto, sei que o silêncio na sala durou apenas o minuto que faltava para as duas da manhã. E posso afirmar isso com tanta certeza porque, quando o ponteiro fez um clique e o bem–te–vi do maldito relógio brega cantou, o corpo de doutor Felipe abriu os olhos e começou a gritar.

***

“Já percebeu que há coisas desativadas que despertam dentro de nós quando precisamos salvar alguém?” Orgulhoso, doutor Felipe acomodou o passarinho ferido no canteiro arborizado que margeava a quadra de tênis e, depois, me enxotou para o outro lado da rede com gestos amplos dos braços. “Vai, vai!”

“Tipo um… instinto maternal? Paternal?” gritei do fundo da quadra, ajeitando a viseira.

Doutor Felipe quicou a bolinha no chão de saibro. Uma, duas, três vezes. Negou com a cabeça e balançou a raquete pra lá e pra cá.

“Muito específico, Isa. Um pouco construído pela sociedade, também. Pense em algo mais geral.” Jogou a bolinha pra cima, mas desistiu de sacar no último instante. “Falo de algo como a satisfação de estar cumprindo algum papel.” E, depois de gingar pra lá e pra cá, finalmente sacou.

Depois de um voo rasante, a bolinha amarela se equilibrou na fita da rede e, caprichosa, caiu do lado de lá.

“Oh, não! Raios!” o doutor gritou, levantando as mãos para o céu em um trejeito exagerado. “Eu achei que ia ganhar dessa vez! Mas é sempre um prazer perder pra você, Isa. É uma pena que a história do torneio de Roland–Garros tenha se encerrado antes que o mundo pudesse testemunhar o seu talento.”

Ele desligou o campo da raquete com um zumbido, deu um saltinho desajeitado para desviar do robô que coletava as bolinhas e veio correndo me dar um abraço de cumprimento.

“Eu gosto quando a partida acaba assim, sabe?” disse ele, colocando a mãozorra no meu ombro enquanto caminhávamos até o vestiário. “Com a vitória na corda bamba!” Ele deu um gole na garrafinha de isotônico e cofiou a barba grisalha. “Exatamente como a nossa certeza, sempre entre a emoção e a razão. Quem sou eu? Onde estou? Qual o sentido da minha vida?” Riu sua risada retumbante. “Em alguns momentos de clareza e as coisas parecem óbvias, mas voltam a oscilar, sempre. Cai, não cai. Mas aí cai, pra lá ou pra cá. Só que tem outra disputa de ponto depois, então a gente nunca tem tempo pra pensar a respeito do que passou.” Mais um gole na garrafa, mais longo. “Não é mesmo?”

Pro meu alívio não precisei responder, porque no instante seguinte ele lembrou de alguma novidade muito interessante, colocou pra reproduzir um trecho de um áudio–artigo da Revista de Medicina da USP e depois engatou em um monólogo sobre arquitetura de nano robôs.

Dei um sorrisinho, informações sobre circuitos e protótipos entrando por um ouvido e saindo pelo outro. Aquele devaneio sobre bolinhas e certezas era bem o tipo de coisa que doutor Felipe costumava falar, fragmentos aleatórios de pensamentos aparentemente desconexos, mas que de alguma maneira faziam sentido dentro daquele cérebro genial.

Um dos cérebros mais valiosos do mundo, embora o próprio mundo não soubesse daquilo. Um cérebro que eu mesma iria desligar dali alguns anos, com o consentimento do próprio doutor. Um cérebro que, naquela época, já estava equipado com um implante desenhado para coletar informações e, no futuro, comandar aquele corpo revivido através de uma inteligência artificial.

***

Foi complicado calibrar o corpo, mas não esperávamos nada muito diferente. Não era de se espantar que aquela nova criatura híbrida vivesse um caos, com os milhões de inputs humanos adentrando loucamente o processador ainda mal ajustado.

Olhei para uma das janelas quebradas depois de um surto e agradeci a sorte e a astúcia de doutor Felipe, herdeiro único do patrimônio estratosférico da família Vilela. Amante inveterado da ciência e um ótimo planejador, Felipe havia construído aquele recanto com todas as segundas intenções possíveis, cada detalhe pensado para evitar interrupções mundanas em sua pesquisa. Com o quarto e o centro médico instalados bem no meio da fazenda no interior de São Paulo, nenhum vizinho ouviria a comoção que ele parecia antecipar desde o princípio.

Corri os olhos pela equipe, já toda a postos mais uma vez. Eu já estava perdendo as esperanças, mas minha função não era duvidar, e sim tocar os protocolos que havíamos desenhado com tanto cuidado para que a morte de Felipe não fosse em vão. Assim, quando Ada fez um joinha pra mim, me virei na cadeira de rodinhas pelo que me parecia a centésima vez.

Felipe estava sentado diante de mim na poltrona do quarto, as mãos enormes acomodadas nos joelhos e a cabeça apoiada no encosto do móvel, como se estivesse cochilando. Para nosso próprio bem psicológico, ele já não usava mais a roupa do hospital. Em seu lugar, vestia uma ceroula e uma camiseta brancas. Fazia um calor horrível lá fora, mas aquele traje era ideal para o quarto climatizado com o ar condicionado que ele costumava ajustar em temperaturas que eu achava glaciais. Mas era naquelas condições que ele gostava de dormir, e era importante que ele estivesse o mais confortável possível durante o processo de start up.

Permiti–me um segundo de admiração. Era incrível ver suas têmporas coradas de novo, tão pouco tempo depois de vê–lo completamente pálido de morte. Estendi a mão e toquei seu rosto, que estava febril. Sob os olhares atentos da equipe, alinhei as sobrancelhas grossas, a barba branca e o bigode, como se checasse as peças de um maquinário caro. Os olhos estavam fechados, mas sabia que, quando se abrissem, estariam brilhantes e azuis como sempre.

Suspirei e retribuí o joinha de Ada. Ela digitou seus códigos milagrosos e, depois de poucos segundos, a cabeça do doutor pendeu com tudo para o outro lado, me fazendo dar um salto. Tentando parecer recomposta, aproximei com a cadeira de rodinhas e coloquei minha mão sobre a dele.

Prendi a respiração enquanto ele erguia a cabeça e abria os olhos, devagarzinho. Senti toda a tensão indo embora quando ao invés de gritar, me empurrar, tentar sair correndo ou atirar os equipamentos próximos no chão — resultados das tentativas anteriores de ativação — doutor Felipe abriu os olhos e sorriu.

“Ho! Ho! Ho!” ele exclamou, colocando as duas mãos na barriga proeminente. Sua voz estava rouca e abafada, como ele não soubesse mais como usá–la. Com efeito, ele pigarreou para ajustar o timbre. “Papai Noel voltou!”

Aquele era o sinal.

A cena parecia ridícula quando falávamos sobre ela, uma piadinha que Felipe se negava a retirar do protocolo. Mas naquele momento tudo o que senti foi minha nuca arrepiando.

O sinal de que o upload da aplicação no processador havia sido bem sucedida. Os nano robôs haviam despertado novamente os principais órgãos de Felipe depois de sua morte encefálica, colocando o corpo de volta em operação, e, enfim, o processador eletrônico havia aproveitado o tranco para tomar as rédeas do trenó.

Aquele era, enfim, o sinal de que a inteligência artificial Papai Noel finalmente estava no comando daquele corpo, o que significava que nossa pesquisa poderia enfim começar.

***

Quase cuspi o valioso café não–sintético da Guatemala quando doutor Felipe me contou o plano da nossa pesquisa pela primeira vez. Até hoje acho que ele marcou aquela conversa em um lugar público — um café chique em Pinheiros — pra que eu não saísse correndo depois da revelação bombástica.

“E tem que ser o… senhor?”

“Sim.” Ele começou a enumerar com os dedos. “Um: eu já instalei o processador em mim há tempos, a base de dados sobre as minhas reações aumenta a cada dia. E dois: o comitê de ética não está pronto pra autorizar essa pesquisa.” Ele deu de ombros. “Então, vamos fazer as coisas meio… por debaixo dos panos, se é que você me entende.” Ele deve ter percebido minha cara de desespero, porque logo completou: “Mas já estamos observando as resoluções legais da pesquisa. Você não será responsabilizada por absolutamente nada. Em nenhuma ocasião.”

Eu já sabia muito bem que doutor Felipe Vilela era um homem excêntrico: além de já conhecê–lo como figurinha marcada da comunidade médica internacional, eu havia acabado de passar pelo processo seletivo mais maluco da minha vida. Além de análises das minhas publicações e entrevistas detalhadas sobre minhas pesquisas, havia participado de dinâmicas e atividades insanas como sessões de degustação de pratos exóticos em salas escuras, partidas de holo–jogos de realidade virtual com cenários de apocalipse zumbi e testes de equilíbrio em percursos usados para treinamento das forças policiais especiais do estado de São Paulo.

Mas aquela ideia parecia louca até para seus padrões.

Notei que meu silêncio já durava minutos, a música clássica ocupando o espaço que eu deixava sem, no entanto, diminuir o constrangimento.

“Mas… usar um cadáver humano como veículo de uma inteligência artificial não faz o menor sentido”, eu disse, quase em um sussurro. Tinha medo que as pessoas ouvissem aquele disparate e resolvessem nos prender ali mesmo. Ou, no mínimo, mandar doutor Felipe para um sanatório.

“Por que não?” ele perguntou, bebericando o café sem deixar de me encarar através das lentes grossas com seus penetrantes olhos azuis. Óculos de grau são coisas obsoletas quando cirurgias a laser podem ser realizadas em segundos, mas doutor Felipe sempre foi um homem clássico, apesar do seu apreço pelas ciências do futuro. De todo modo, os oclinhos de lente de meia–lua combinavam perfeitamente com seus suspensórios vermelhos e sapatos brilhantes. Faziam total jus ao seu apelido carinhoso. Papai Noel.

“Porque desenhar e construir novos suportes para inteligências avançadas é muito mais lógico”, eu afirmei. Tentava parecer eloquente, mas minhas mãos tremiam. “Eles são mais fortes. Bem mais baratos, ou, pelo menos, mais abundantes. Muito mais éticos, também. E mais… confiáveis.”

“Ah, sim,” ele confirmou, limpando o bigode branco com batidinhas elegantes do guardanapo. “Mas você se refere à potencial produção em massa de androides de serviço, eu suponho.”

Eu confirmei com a cabeça. A linha de pesquisa principal de Felipe Vilela era a Humanização Artificial, um termo que ele mesmo havia cunhado anos antes para se referir ao processo de otimização das respostas de inteligências artificiais de modo a aproximá–las das respostas dos seres orgânicos, em especial humanos. E, até onde eu sabia, não havia outra razão pra buscar a melhora da inteligência artificial senão para aplicá–la a androides de serviço.

“Não…” Ele sorriu, paternal, balançando a cabeça. “Eu não estou interessado nas aplicações industriais dessa pesquisa. Tudo o que eu quero é provar um ponto. Você entende?”

Meu café estava quase acabando. Tentando ocupar a boca enquanto pensava no que falar, beberiquei o restante bem devagar. Não, eu não entendia, definitivamente. Mas, felizmente, doutor Felipe parecia estar fazendo apenas uma pergunta retórica.

Ele se esticou na cadeira.

“Sabe… Eu gosto desse café porque eles ainda usam vitrolas e vinis.” Ele apontou a fonte da música com a cabeça. “Vinis originais, sem remasterização.”

Assenti, em silêncio, embora não soubesse bulhufas sobre música, muito menos sobre vinis jurássicos e processos de remasterizarão. Precisava de alguma coisa pra beber para disfarçar minha ignorância apropriadamente, então chamei o garçom com um sinal e pedi uma água com gás. Doutor Felipe fechou os olhos e começou a apreciar a música, a cabeça oscilando lentamente no ritmo do som. Ele só voltou a abrir os olhos quando o garçom voltou para me servir.

“Nossos ouvidos emburreceram com o tempo.” Ele deu uma risadinha. “Já não são mais tão sensíveis às diferenças, mas a verdade é que nenhum outro suporte oferece a mesma música que os vinis originais tocados nas vitrolas.” Ele serviu um gole da minha garrafinha de água recém chegada no próprio copo, dando os primeiros sinais da relação descontraída que manteríamos pela próxima década. “Sabe o porquê?”

Neguei com a cabeça, questionando internamente se eu era, realmente, o melhor recurso para ocupar aquela vaga. Eu sabia que pesquisadores da elite acadêmica médica do Brasil e do exterior haviam participado do processo; com certeza algum deles estaria menos perdido do que eu naquela conversa.

“Analógico e digital” ele disse, pousando as duas mãos espalmadas sobre a mesa. Agitou a mão direita. “Digital é infinito e perfeito. Um input específico gerará sempre o mesmo output. Zero ou um, zero ou um, zero ou um.” Agitou a mão esquerda. “Já analógico é finito e imperfeito. Um output nunca será igual ao outro, mesmo que os inputs sejam muito similares.”

Ergui as sobrancelhas e, seguindo meu plano de disfarce, comecei a beber a água sem pressa nenhuma. Entendia aqueles conceitos, mas ainda não tinha a menor ideia da relação do papo musical com aquela proposta maluca de desenvolver uma das pesquisas médicas mais audaciosas da história.

Ele se inclinou sobre a mesa e olhou em volta, mas parecia mais preocupado com o efeito dramático do gesto do que com a possibilidade de estar sendo ouvido. Hoje, em retrospecto, sei que a possibilidade de ser preso não o preocupava: ele era um homem que estava disposto a morrer pela própria pesquisa, literalmente.

“Os processadores ideais já estão prontos, Isadora. Há tempos.” Ele tocou a própria têmpora e se aproximou um pouco mais. “Os primeiros computadores passaram no teste de Turing no século vinte um. Os atuais já são mais inteligentes do que qualquer humano, já não há mais dúvidas sobre isso. Ainda assim, criaturas munidas de inteligências artificiais ainda não são iguais a nós.” Ele deu de ombros. “Diga o que quiser, mas eles não são iguais. Quase iguais, talvez. Mas não iguais.”

Nossos rostos estavam muito próximos, como se estivéssemos dividindo um segredo mortal. Como se para provar o ponto que acabara de falar, as pupilas de seus olhos azuis dilataram e contraíram. Ele fungou, fazendo as narinas tremerem levemente sob o bigode. Uma gota de suor escorreu pela sua têmpora, desviando ao chegar na sobrancelha grossa. Muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, uma reação complexa de doutor Felipe que dificilmente se reproduziria daquela exata maneira uma segunda vez, ainda que tivéssemos novamente aquela mesma conversa.

“Humanos são analógicos, Isadora. Totalmente analógicos”, ele disse, devagar, os olhos e a boca sorrindo de um jeito peculiar. Humano. “O problema das inteligências artificiais não está no processamento. Está na coleta dos inputs e na expressão dos outputs. O software está pronto, mas o hardware ainda é imperfeito.” Ele franziu o nariz. “Digital demais. Sem enzimas ineficientes, sem hormônios descontrolados, sem pequenos defeitos, sem reações adversas, sem respostas fora do padrão e dados impuros e ilógicos sujando a base de dados. Entende?”

Quando ele terminou de falar, notei que minha mão apertava a garrafinha de água com força, cada pelo do meu corpo arrepiado com os resultados que poderiam derivar daquela pesquisa.

Foi quando entendi que, à despeito da minha ignorância musical, eu era a pessoa perfeita para ocupar aquela posição.

***

Discutimos o objetivo da pesquisa até a exaustão. Um homem — um dos maiores pesquisadores do país — entregaria a própria vida por aquele estudo, então não havia nenhum espaço para leviandades. Além do mais, a necessidade de implantar o processador com tanta antecedência e toda a complicação com os comitês de ética transformavam o sacrifício de Felipe em uma chance única.

Mirei o formulário na prancheta eletrônica que tinha em mãos. O objetivo de fato era claro — descobrir se, com o hardware correto, a inteligência Papai Noel poderia ser totalmente equiparável à humana —, mas os resultados ainda eram provenientes de medições extremamente subjetivas. Lembro de desejar todos os dias que o teste de Voight–Kampff fosse uma realidade, uma série de trinta perguntas cuja respostas poderiam ser analisadas em termos fisiológicos simples. Mas, infelizmente, o futuro de verdade não era tão simples como o da ficção.

Miguel sentou–se na cadeira ao meu lado, um sorriso simpático no rosto. Ele era, provavelmente, o melhor enfermeiro do país. Logo depois de defender o revolucionário pós–doutorado, havia sido recrutado por doutor Felipe em pessoa. Além de receber um salário condizente com a confidencialidade e com os riscos do projeto, era claro que Miguel era a pessoa ideal para cuidar de Papai Noel: ele também acreditava naquela pesquisa. Reconhecia, assim como eu, o tamanho daquilo tudo.

“Vamos fazer mais um teste, doutor.” Ele arregaçou as mangas do jaleco. “Dá a sua mão aqui, por favor, e depois olha pra lá.”

“Beleza!” respondeu Papai Noel, animado, e eu senti um calafrio correr pela espinha: era realmente impressionante vê–lo funcionar.

Eu desejava com todas as forças que nossa pesquisa tivesse resultados positivos, mas no fundo eu não estava preparada para respostas tão boas. Depois de alguns dias tumultuados de calibração, Papai Noel já se comportava como um perfeito humano. Como Felipe. Cheguei a cogitar a possibilidade de estarmos todos presos em uma pegadinha sem graça do doutor, mas o procedimento de segurança tornava a hipótese impossível: o processador havia sido desenhado de tal forma que jamais funcionaria enquanto o cérebro de Felipe estivesse vivo. Ou o cérebro, ou o processador. Era a maneira de proteger sua mente da destruição traumática caso a morte encefálica não fosse completa e o start up de Papai Noel acontecesse enquanto Felipe ainda era ele mesmo. Não conseguia nem dimensionar o desespero de ter a mente tomada por uma inteligência estranha; era grata que alguém tivesse pensado naquilo.

Papai Noel estendeu a mão e, como orientado, olhou por cima do ombro. Miguel pegou a resistência elétrica que aquecia na bancada e aproximou a ponta metálica de um dos dedos do objeto de pesquisa.

“Dói?”

“Ai! Sim, raios, isso dói!” reclamou Papai Noel, puxando a mãozona para si.

Eu e Miguel trocamos olhares apreensivos.

“O que dói?”

“O meu dedo, ué!” Ele fez um bico cômico, franzindo o bigode de uma forma que, em tempos passados, costumava me fazer rir.

“E… por que dói?” perguntei, seguindo o formulário.

Sem hesitar, Papai Noel deu um sorrisinho maroto.

“Ah, mas que pergunta mais boba!” Ele riu. “Dói porque esse treco é quente pra dedéu, Isa. Qual é o problema de vocês?”

Eu e o enfermeiro trocamos olhares novamente, dessa vez decepcionados. A resposta era correta, o tom era casual e próprio de Felipe… Mas, mais uma vez, aquela era uma resposta extremamente racional. Esperada. Certa.

Corri os dedos pela prancheta eletrônica e abri o resumo simplificado da pesquisa. Cada linha, que representava um teste diferente, era acompanhada por três caixinhas de seleção. Resposta humana, resposta ambígua ou resposta artificial. Depois de analisar os comentários detalhados de cada teste, deliberávamos e selecionávamos naquele formulário o nosso parecer final do teste.

Rolei a tela. Nas últimas duas semanas, havíamos completado toda a série de testes morais e metade dos testes sensoriais. E, até aquele momento, só as caixinhas centrais haviam sido marcadas. Por exemplo, Papai Noel havia repudiado todos os tipos de discriminação e de atividades nocivas à outros ou ao meio ambiente, mas, embora aquele comportamento pudesse sugerisse algum tipo de empatia, no fundo sua posição era extremamente racional. De uma perspectiva lógica, defender os direitos humanos era óbvio e, inclusive, legal — Papai Noel havia inclusive recitado a Constituição para provar seu ponto.

Com um toque contrariado, marquei mais uma vez a caixinha do meio. Ele parecia reconhecer — e talvez até sentir — a relação de causa e efeito entre o aquecimento da pele de seu corpo e a expressão da dor, mas não havia sequer hesitado na hora de explicar a razão daquela reação. Nenhum output analógico. Respostas totalmente digitais.

Olhei para o relógio e declarei o fim da sessão. Não sabíamos como o corpo ressuscitado reagiria, a longo prazo, depois que estivesse ocupado por Papai Noel. Assim, decidimos começar de leve pra depois aumentar pouco a pouco a frequência e duração dos testes. Em seu tempo livre, o deixávamos em seu quarto lendo, navegando na internet — uma ótima maneira de retroalimentar a base de dados — ou realizando atividades leves acompanhado de Miguel. Estava me preparando pra ir para minha sala ler alguns artigos quando ele se levantou da cadeira e esticou os braços para se espreguiçar.

“Vamos tomar um café?” ele disse, fazendo um sinal de cabeça que eu e Miguel conhecíamos muito bem. Um convite tão familiar que fez meus olhos começarem a marejar. A presença de seu corpo ali tentava me dissuadir daquilo, mas na verdade eu sentia muita falta de doutor Felipe. Do verdadeiro doutor Felipe.

Troquei olhares com Miguel, que sorriu e deu de ombros.

“Por que não?”

Felipe sempre reforçava a importância de fornecer estímulos constantes a Papai Noel depois de sua ativação. Enquanto ele estava vivo, o processador passivo coletava informações de sua mente e construía a base de dados, mas ele precisaria de um fluxo constante de novos conflitos para incrementar o sistema de feedback com as próprias resoluções quando o processador fosse ativado. E a maneira de fazer isso, segundo doutor Felipe, era tratá–lo como se nada tivesse mudado. Simplesmente conversar.

Mas, na prática, “simplesmente conversar” com Papai Noel não era tão simples. Por mais que sua aparência fosse perfeitamente humana, era impossível encarar os olhos azuis através dos óculos de meia lua e não lembrar que, de maneira objetiva, aquele era um cadáver ressuscitado comandado por uma inteligência artificial, um computador. Felipe não estava mais ali. Será que havia outro alguém em seu lugar? Não era, objetivamente, o que tentávamos demonstrar, mas era difícil dissociar uma coisa da outra. O fato era que vários dias haviam se passado, mas eu ainda não sabia muito bem como lidar com a presença de Papai Noel.

Por isso, um silêncio incômodo se interpôs entre nós enquanto seguíamos para a área de café. Sentamos na mesinha e, me utilizando da técnica que jamais precisara usar de novo desde o meu primeiro encontro com o doutor, comecei a bebericar o café bem devagar para ter uma desculpa para não falar.

Felizmente, Miguel enfim puxou um assunto qualquer. Falávamos sobre amenidades havia algum tempo quando Papai Noel, até então em silêncio, suspirou e espalmou as duas mãozorras na mesa.

“Você…” Ele apontou pra mim e reclinou–se sobre a mesa. Recuei, impressionada com a familiaridade daquele gesto. “Você sabe qual é a sua razão, Isa?” Ele pegou um guardanapo de papel na mesa e o dobrou em dois, usando–o para enxugar o suor que escorria pelo rosto vincado. Tão doutor Felipe. “Qual é o seu papel?”

De soslaio, notei que Miguel havia ligado o gravador da prancheta digital. Ele fingia consultar alguma coisa muito interessante no feed de notícias, mas eu sabia que ele estava trabalhando, pesquisando, analisando aquela nossa conversa. Até o momento, Papai Noel havia reagido muito bem a todos os nossos estímulos, mas raramente o desejo de interagir partia dele. No entanto, em poucos minutos, aquela era a segunda vez que ele colocava as asinhas de fora.

Franzi a testa, pensando no que responder. Aquele era, talvez, o momento mais importante da pesquisa. Era minha função manter aquele papo rolando.

“Concluir essa pesquisa”, respondi. “Ela vai trazer muitas coisas boas pro mundo quando terminar, eu tenho certeza. Hoje, esse é meu papel.”

Papai Noel pareceu ponderar, um biquinho nos lábios corados. De repente, era como se estivesse de novo na tarde da minha entrevista para ocupar aquele lugar que, notei, era a única coisa que definia quem eu era naquele momento.

“Mas… você sabe que essa pesquisa um dia vai acabar, não?” Ele dobrou o papel mais uma vez, vincando a dobra com a unha do dedão. “E aí? Pra onde o seu telescópio vai apontar?”

Olhei para Miguel e balancei a cabeça. Não sabia muito bem o que responder. Ele também balançou a cabeça de um lado pro outro, confuso, e antes que pudesse dar por mim, eu havia começado a chorar.

***

“Eu gostaria que a cobaia não precisasse ser você, doutor Felipe. Sério.”

Ele deu de ombros, regando os pés de manjericão.

“Cobaia é um termo meio exagerado, Isa.”

“Não é exagerado, oras.” Enxuguei o suor com as costas da mão, irritada. Eu era muito bem paga e amava meu trabalho, mas às vezes perdia a paciência com a calma aérea de doutor Felipe. Não era incomum que tivesse que perseguir meu orientador pelos cantos da fazenda ou por partidas de tênis até que ele estivesse no humor adequado para discutir coisas sérias. “É o que você vai ser, uma cobaia.”

“Bom, se você insiste…” Ele puxou uma folhinha de manjericão do ramo e a espremeu entre os dedos, fechando os olhos para apreciar o odor. “Alguém terá que ser uma cobaia, certo? Nada mais justo que seja eu. Eu estou me sacrificando, Isa. Voluntariamente.”

“Poderíamos arrumar um outro voluntário, e…”

Doutor Felipe se levantou de repente e apontou com o indicador para o céu.

“Sabe a Laika?”

“A…” Abri e fechei a boca várias vezes, confusa. “A cadela do Sputnik?”

“Ela mesma.” Ele limpou o suor da própria testa vermelha e começamos a deixar a horta. “Sabe como a Laika morreu?”

Neguei com a cabeça.

“A temperatura no módulo subiu demais. Dizem que ela não conseguiu se acalmar sem a presença dos treinadores e acabou morrendo… cozida.” Ele suspirou. “Sozinha. Confusa. Com dor. Sem ninguém para resgatá–la. Sem poder pedir ajuda, também.”

Abri a boca para retrucar, ultrajada pelo golpe baixo, mas nenhuma palavra saiu.

“Não seria capaz de mandar mais ninguém nessa aventura maluca, Isa.” Ele deu um sorrisinho. “E, pra ser sincero, eu também quero ter um vislumbre das estrelas. Vê? Todos ganham.”

Comecei a pisar duro na terra fofa que cercava a horta. A verdade é que eu não queria que doutor Felipe fosse e me deixasse sozinha pra trás. Será que ele não entendia?

“E se o módulo superaquecer e você ficar perdido? Confuso? Sozinho?” disse, tentando manter aquela metáfora boba.

“Isso não vai acontecer, Isa”, ele disse, com aquela calma que costumava me irritar. “Eu faço questão de garantir que, caso necessário, haja um modo de abortar a missão.”

***

Meu pai terminou de colocar os pratos na mesa e correu para atender a porta quando a campainha tocou. A portaria do condomínio havia ligado e, para nossa surpresa, havia anunciado a chegada de um pacote especial. Endereçado a mim. Em plena noite de véspera de Natal. A transportadora era conhecida e tinha todos os meus dados, então autorizei o entregador a entrar.

Desliguei o fogo da farofa e, curiosa, segui para a sala atrás de papai, desviando de um sobrinho aqui e de um brinquedo jogado ali.

“Isadora Maia?”

O rapaz não tinha nenhum pacote nas mãos. Mas, quando assenti e forneci minha assinatura digital, ele correu até o fundo do furgão e voltou de lá com um caixote plástico. Uma gaiolinha. Que chacoalhava. E chorava. E latia.

Quando abri a caixa, a vira–lata branca e marrom saiu agitando o rabinho por entre as minhas pernas, fazendo festinha pra quem via pela frente. Para o meu alívio, a comoção em torno do novo bichinho era tão intensa que meu choro emocionado se perdeu entre risadinhas e exclamações infantis.

“Laika,” murmurei, coçando a cabecinha crespa. “Pronto. Você não tá mais sozinha, tá? Cheguei pra te resgatar.” Ela deu uma mordidinha na minha mão e eu notei que algo se destrancava dentro de mim. Um único olhar trocado e eu sabia que terminar aquela pesquisa não era meu único papel na vida. Alguém precisava ser salvo por mim e, em resposta, algo dentro de mim mudava. “Ou talvez você tenha vindo para me resgatar. Como quiser.”

Tentei me recompor e então levantei. Eu não conseguia acreditar. Aquilo era incrível, impressionante, assustador. Já sabia a resposta, mas perguntei sobre o remetente do presente mesmo assim.

“A compra foi anônima, senhora”, respondeu o entregador. “Mas o engraçadinho assinou com um apelido.” E, com uma risadinha, ele me estendeu um bilhete. Um obsoleto bilhete.

‘Aproveite a nova estrelinha e não ouse perder a ceia de Natal. Com carinho: Papai Noel’, dizia a letra curva e elegante de doutor Felipe.

***

Eu sabia que alguma coisa não estava bem. Aquela mensagem podia parecer inocente, mas na verdade era um sinal. Eu só não sabia muito bem do quê.

Não queria estragar a ceia da família, então disfarcei minha aflição e segui as recomendações do bilhete. Jantamos, trocamos presentes, tomamos o café com chantilly que, por alguma razão, era a nossa tradição exótica de Natal. Deixei as crianças brincando com Laika, que havia transformado a reunião em uma festa ainda maior, e próximo das duas da manhã disse que precisava me ausentar.

Coisas de trabalho.

A fazenda Vilela ficava e uma hora e pouco da capital. Programei o piloto automático para a velocidade máxima da pista e reclinei o meu banco. Devo ter cochilado, pois pensava em passarinhos feridos e estrelas cadentes quando as luzes internas do veículo se acenderam, indicando minha chegada ao destino.

Entrei desejando Feliz Natal aos funcionários regulares da fazenda, que pareciam não notar nada de diferente naquela noite que supostamente deveria ser feliz. Quando passei meu crachá e entrei na ala médica, porém, notei que estava certa. Havia algo errado.

Papai Noel estava deitado na cama, vestido no pijama de ceroulas e camiseta brancas. Tinha os olhos abertos, mas parecia inconsciente — não sabia se aquilo era possível, mas era o que parecia. Os funcionários de plantão haviam organizado uma ceia, mas, segundo os relatos, Papai Noel havia se retirado para seu quarto depois de uma breve participação.

“Era uma das condições,” balbuciou Miguel. O enfermeiro estava sentado na cadeira ao lado da cama, uma das mãos acariciando o ombro de Papai Noel.

Ada, em um vestido prateado de festa, estava do outro lado da cama e tinha uma expressão culpada no olhar. Miguel a havia convocado, aparentemente.

“Me desculpa, Isadora, mas Doutor Felipe fez eu prometer que colocaria uma função especial dentro do código.” Ela franziu a testa. “Uma função secreta. Oculta. Ninguém poderia saber.”

“Uma função que faria exatamente o quê?” perguntei, entredentes, um pouco mais estúpida do que pretendia.

“Uma função de… desligamento voluntário.” Ada suspirou.

“Uma função de autodestruição”, murmurou Miguel. “Um código que Papai Noel ativou há algumas horas. Ele não ia contar, mas eu achei essa indisposição estranha e resolvi checar as respostas fisiológicas.” Ele apontou a prancheta eletrônica. “Ele tá morrendo, Isa. Pouco a pouco.”

Aproximei–me da cama. Para minha surpresa, Papai Noel virou a cabeça e seus olhos desanuviaram um pouco, como se estivesse acordando de uma hibernação.

“Viver é bonito, Isa.” Quando ele falou, todos na sala se aproximaram, surpresos. “Mas também pode ser bem opressivo. Acho que, comigo, a opressão ganhou.”

Eu funguei.

“Não, calma lá… isso não faz o menor sentido!” Meu coração batia rapido, cheio de adrenalina, como se eu tivesse só uma chance de falar as coisas certas. “Você acabou de me mandar um presente, uma… razão! Você não pode… Não faz sentido!”

Papai Noel deu uma risadinha fraca, que logo se transformou em uma tosse senil.

“Não faz sentido mesmo, eu acho.” Ele suspirou. “A bolinha. Ela poderia cair pro lado de lá, mas… ela caiu pro lado de cá. Só isso.” Ele tossiu mais uma vez. “Simples assim. Analógico, sabe? Zero. Um.”

Abri e fechei a boca várias vezes, tomada por uma mistura de deslumbre científico, pesar e indignação. Aquele podia ser doutor Felipe, tão humanas eram aquelas reações, mas ao mesmo tempo ele era outra coisa tão complexa que não podia ser resumida na identidade de outrem.

Era, em uma simplificação ridícula, a resposta de décadas de pesquisa. Mas, para minha tristeza, aquela única e valiosa resposta estava morrendo. E não havia nada que eu pudesse fazer.

“Morrer… dói?” perguntei, enfim.

“Sim.” Ele deu de ombros. “Dói.”

Encolhi–me, confusa. Doía em mim também, mais do que achei que seria possível.

“E onde dói?”

Seus olhos agora fitavam o teto, sem piscar.

“Em um lugar que…” ele hesitou. “Sei que não faz sentido, mas sinto doer em um lugar que… acho que não pertence a mim.”

“E por quê está doendo?” murmurei, tentando segurar o choro.

“Porque… não sei.” Ele sorriu. “Dói porque… sim.”

Absolutamente nada mudou em seu rosto, mas soube imediatamente que o processador havia parado de funcionar. Durante aquela pesquisa, havia aprendido o que, em décadas de estudo da medicina, havia simplesmente ignorado: que o sinal da vida vai além do reflexo das pupilas, enzimas e movimentos torácicos.

Mirei pela última vez os olhos azuis de Felipe e, depois de dobrar os óculos de meia–lua e depositá–los na mesinha de cabeceira, fechei as pálpebras de Papai Noel.

Enquanto o restante da equipe despedia–se à sua maneira e iniciava o protocolo já acertado que garantiria a doutor Felipe Vilela uma morte oficial discreta e livre de questionamentos constrangedores, liguei a minha própria prancheta e abri o resumo simplificado da pesquisa.

Os testes seguiam uma ordem lógica, com os mais complexos e subjetivos por último. Na melhor das nossas hipóteses iniciais, aquele teste só seria realizado meses no futuro. Talvez anos. No princípio, queria resultados o quanto antes, mas agora me pegava desejando que ainda pudéssemos ter anos e anos para pesquisar. Para conviver com Papai Noel. Talvez, com Felipe.

‘Demonstrações espontâneas de compreensão e afeição’, li, encontrando o teste que procurava. E, com as mãos trêmulas e os olhos marejados, tiquei a primeira coluna — “resposta humana” — pela primeira e última vez.

Lembrei–me das palavras de doutor Felipe: era hora de virar o telescópio para outro lugar. Sempre pensava naquele momento como o final, mas agora entendia que aquele era só o começo. Tantas outras razões pra continuar, tanto outros pontos para provar. Laika, para resgatar e ser resgatada.

 E, com um sorrisinho, lembrei que as palavras sobre estrelas e telescópios haviam sido, na verdade, do verdadeiro Papai Noel.


Jana P. Bianchi é leitora, filha, viajante, irmã, escritora, colaboradora do Clube de Autores de Fantasia e do Pacotão Literário, humana da Pipoca e da Paçoca e, nas horas (não) vagas, engenheira de processos industriais. Devaneios, textões e fotos de filhotes em:

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