Serendipicidade
por Jorge Quillfeldt
Ninguém, exceto Jaime, achava que aquilo funcionaria. Não havia energia suficiente, os circuitos de controle estavam fritos e o controle ambiental estava chegando na marca vermelha. Como naqueles filmes B de ficção do século XX, tudo dependia da imprudência (ou ousadia) do piloto. Daí seu aparente otimismo na ação.
A nave–laboratório MENAB–1 – sigla para Matéria Escura Não–Bariônica – integrava a frota dos experimentos de física banidos da superfície da Terra por razões de segurança. Já ia longe o tempo do Grande Colisor de Hadrons, quando apenas uma duzia de conspiracionistas temia o apocalipse pelas mãos da ciência: esses experimentos (três, na verdade) eram realmente perigosos. Naves espacias desgovernadas, também eram.
Jaime não pensou duas vezes: ao perceberer que estava sem controle e em rota de colisão com a estação espacial mais populosa em órbita de Vênus, acionou o experimento de ancoramento bariônico de matéria escura uma última vez, redirecionando à frente da nave o material que se acumulava rapidamente. Era tudo que podia fazer, e era uma grande aposta.
Das duas uma: ou isso pioraria a situação acrescentando massa ao corpo da nave que, juntos, colidiriam fatalmente com a Estação Cronus – como parecia inevitável – ou, hipótese vestida de esperança, o colapso da enorme quantidade de massa recém produzida rapidamente deformaria o espaço–tempo diante da MENAB permitindo um desvio na rota que evitaria a colisão. Uma espécie de “cavalinho–de–pau” no contínuo, pensou Jaime. Na distância em que se encontravam, isso possivelmente produziria danos estruturais sérios na Cronus, mas não havia alternativa melhor.
A imagem no monitor frontal ficou turva, como quando olhamos através de um drinque desagradável já muito tarde na noite. Talvez fosse disso que Jaime precisasse naquele momento. Mas algo definitivamente estranho estava acontecendo ali em frente…
A imagem sumiu. Por instantes a MENAB parecia flutuar em gravidade zero, girando à deriva.
Jaime pensou: então é assim quando a gente morre? E sem aquele drinque? Sentia um forte enjôo e só pensava em apagar e dormir.
Após alguns segundos, uma imensa bola branco–esverdeada emergiu pelo canto direito do monitor, subindo até ocupar a tela inteira. Pelo tamanho e posição, tinha que ser Vênus, e batia com a distância em que estava antes do… como chamar isso? Mas nem sinal da Cronus. Teria sido destruída?
Não havia nada. Nem sinais de rádio.
Olhando mais atentamente, Vênus também não tinha exatamente o mesmo aspecto de antes.
Por alguma razão, era possível avistar através de sua densa atmosfera. Agora podia–se enxergar a superfície da grande caldeira do maior efeito estufa aprisionante conhecido no Sistema Solar: viam–se continentes, oceanos, rios e vales. A cor esverdeada alternada com trechos de cor bege ou branca sugeria uma vegetação abundante no planeta mais inóspito do Sistema Solar… Aquele era um planeta vivo, muito diferente da Vênus que conhecemos.
O navegador automático checou a posição e concluiu que, pela configuração das constelações, aquele não era o céu do presente. O céu continha estrelas gigantes quentes desconhecidas e outras, faltavam. Os cálculos sugeriam uma data tentativa situada entre…será possível? Algo entre 2,5 e 3 bilhões de anos antes da nossa era!
Jaime conferiu várias vezes, mas os dados se repetiam, estonteantes.
O experimento dera certo. Até certo ponto. A intenção era usar a massa agregada pelo ancoramento bariônico para curvar o espaço–tempo e, saltando nessa região, encurtar distâncias. O hipotético “vôo de dobra” era uma previsão sólida aguardando o teste definitivo nos útimos cento e cinquenta anos, e agora estava em parte vindicado. Então era assim que a Enterprise se deslocava pela galáxia… – pensou tentando achar alento.
Mas… viagem no tempo? Isso era considerado impossível e quase consensualmente descartado pela comunidade científica, por inúmeras razões.
Jaime apreciou a paisagem diferente e, desolado, concluiu que ninguém nunca saberia o que aconteceu de fato.
A maior invenção da história da tecnologia parece ter–se consumido a si própria.
Nas planícies de Baltis Vallis repousam os restos retorcidos e profundamente oxidados da MENAB–1, esperando pelos atônitos arqueólogos do futuro.
Sobre o autor: Jorge A. Quillfeldt, Neurocientista. Professor (UFRGS) e divulgador da ciência, mora em Porto Alegre, RS, mas vive no quadrante alfa da galáxia.