Roda da Fortuna
por Viviane Maurey
— O prédio tem cento e catorze andares. A vista não é bonita do 57º andar, tantos edifícios, tanto cinza para todos os lados. E é imundo. O mundo em volta, é claro. O prédio, não. Nunca o prédio. Ali, tudo é impecável. A decoração, as paredes, os detalhes. Calculado. Quase como em uma orquestra, em que todas as peças se encaixam para criar uma harmonia, só que sem a música. A única melodia que se pode ouvir naquela estrutura de ferro e concreto vêm do abrir e fechar de portas automáticas de vidro, que parecem resmungos de um extintor de incêndio mal humorado…
— O que você fazia no prédio?
— Era noite de Natal e me pareceu a coisa certa a fazer. É o que muita gente queria poder fazer nessa época, mas nem tudo é possível. Enfim, não é bem o que eu fazia que importa e sim o que o prédio é capaz de fazer.
— E o que o prédio é capaz de fazer?
— Como eu disse antes, do 57º andar a vista não é agradável. Mas do 114º… E você não pode simplesmente subir todos os andares e apreciar essa vista formidável. Você tem que merecer isso. O prédio tem que estar de acordo e aprovar a sua ida até o topo. Não é algo fácil de se fazer, por isso nem todo mundo tenta. De qualquer forma, se alguém decide arriscar, ninguém do prédio pode impedir.
— E você escolheu subir?
— O nosso conceito de escolha é diferente da do prédio, entende? Ele não entende a diferença entre querer fazer algo e agir porque nos sentimos encurralados.
— Você foi coagida a subir?
— Fui manipulada… fui convencida de que a coisa mais importante da minha vida era conhecer o 114º andar.
— E o que tem de importante no 114º andar?
— A resposta.
— Que resposta?
— A resposta. Para a pergunta que você carrega por toda a sua vida.
— E o que tem a vista do último andar do prédio ser bonita?
— O quê?
— Por que a vista é relevante? Se o propósito do último andar é oferecer uma resposta para uma pergunta?
— … A vista do prédio é a resposta.
— E o que você viu?
— Não importa. Não é relevante se você não conhece a pergunta.
— Você vai me dizer qual é a pergunta?
— Eu digo, mas não vai adiantar, só entende quem é o dono da pergunta.
— Você não vai responder?
— Eu achava que tudo tinha um preço, sabe? Tudo o que eu fazia tinha um motivo. E que a soma de todas as ações me tornaria uma pessoa especial. Única. Eu queria saber se era inútil me importar.
— Essa era sua pergunta?
— Você acha que carrega uma pergunta durante uma vida inteira, mas, no momento em que a oportunidade se apresenta, de conseguir uma resposta para essa pergunta, você percebe que nunca fez a pergunta que pertence a você de fato. A pergunta que é tão única quanto sua impressão digital. Eu reparei o quanto eu não conhecia o desenho da minha própria digital. Justamente o que me tornava especial no mundo… Era quase como se eu não fizesse ideia de quem eu era. Questionava minhas ações e refletia sobre minha singularidade, mas não sabia nem desenhar as linhas que patenteavam minha existência.
— Você encontrou a pergunta na sua impressão digital?
— De certa forma, sim.
— E eu não vou entender a sua pergunta porque afinal ela é a soma de traços de um desenho que só existe em você, portanto, apenas você consegue ler e decifrar?
— …
— E o que você viu?
— Você.
— O que aconteceu depois?
— Eu caí.
— Caiu ou pulou?
— Não faz diferença, eu levei minha impressão digital pro abismo comigo.
— E você quer uma segunda chance para…?
— Agora que sei como é meu desenho, quero ter a chance de conhecer outras impressões digitais.
— Aguarde a votação.
***
— Qual é a sua história? — perguntou o Sombra. Ele era uma dessas criaturas que mudava de forma e ganhava a aparência de acordo com o gosto de cada um. Alguns diziam que o viam de terno e gravata, careca, às vezes completamente nu, usando um chapéu de cowboy, para outros a Sombra se mostrava como uma mulher de quarenta, de shorts e sandália de salto, ou uma menina de camisola e óculos–escuros, às vezes até mesmo um bebê fumando charuto. Dependia, é claro, de quem falava com ele. Eu o via como um espectro de fumaça escura, porque afinal o cara se chamava Sombra, e não dava margem para imaginação.
— Você quer a versão longa ou resumida? — falei, passando a parte de trás da mão no nariz e fungando. Abri um sorriso sacana, porque eu sabia que o Sombra ficava impaciente quando a gente manifestava esses comportamentos de gente viva.
— Qual você prefere?
— Acho que a resumida tá de boa.
— E por onde quer começar?
— Ah, tanto faz. Acho que pelo final, não é melhor? — O Sombra também não gostava quando a gente devolvia a pergunta mas, apesar de depender dele para satisfazer meus interesses, eu não podia resistir.
— Como quiser…
— Tá. Então, se prepara porque é emocionante. Natal é aquela coisa, né? Presente, Papai Noel, é uma merda pra quem tá duro. Minha mulher ficou enchendo a paciência porque eu tinha que contratar um maluco pra se vestir de velhinho barbudo e gordo, como se isso fizesse algum sentido.
Olhei para o Sombra para ver se ele tinha algo a dizer, mas ele raramente interrompia um revelato. Mal se movia… talvez estivesse dormindo. Ninguém nunca escutava minhas histórias. Nunca aprendi a falar direito, zero talento para esse negócio de voz alta, meu negócio é agir. Talvez se eu acelerasse um pouco pra parte agonizante…
— Então, tive uma ideia pra véspera de Natal, ideia brilhante, sério, coisa de louco! Consegui uma roupa de Demolidor, que não é bem a roupa do Papai Noel, mas foi a única coisa que arranjei em tão pouco tempo, porque um camarada tinha acabado de comprar pra fazer um bico numa festa de criança, e decidi eu mesmo aparecer caracterizado para os meus filhos na noite de Natal. A merda é que não era nem aquele uniforme dele vermelho com orelha de diabinho, era só a calça preta de couro, a blusa de manga comprida preta e um pano preto pra enrolar em volta da cabeça, escondendo o rosto até um pouco acima da boca. Tive que fazer um buraco maior na altura dos olhos, porque não estava enxergando nada, não sei como meu camarada conseguiu fazer qualquer coisa na festa de criança. Enfim, não falei nada pra minha mulher nem pros meus filhos, porque queria fazer surpresa e, se eu dissesse que não tinha conseguido roupa de Papai Noel e que no lugar ia de Demolidor, ia escutar um sermão daqueles, e isso acabaria com o clima de Natal.
O Sombra pareceu se mover dois centímetros para o lado e aguardei esperançoso. Ele já devia ter feito alguma pergunta. Talvez eu não estivesse contando nada de útil ainda… Talvez não fosse o que ele esperava. Talvez a minha história não fosse boa o suficiente.
— Saí de casa logo depois do almoço, de mochila, e disse que já ia voltar. Meus filhos estavam brincando no quarto, e minha mulher não estava falando direito comigo porque achava que eu tinha esquecido a parada toda de “ser o Papai Noel para as crianças!”. Passei a tarde na casa de um camarada e toda vez que tocava o celular eu deixava cair a ligação. Quando anoiteceu, já todo vestido de Matt Murdock, deixei a mochila na casa do amigo e fui pra casa pelo caminho mais longo, treinando movimentos sagazes com o cassetete para impressionar meus filhos. Tive que me esconder várias vezes para não chamar atenção da polícia e dos traficantes do bairro. Realmente era uma péssima ideia não ser reconhecido num lugar de conflitos, mas o que eu podia fazer? Não ia ter graça nenhuma me trocar em casa, meus filhos não eram estúpidos!
Mordi e lambi os lábios para ver se arrancava alguma reação do Sombra, mas ele continuava naquele torpor que me tirava do sério. Era muito difícil falar um monte de coisa da minha vida e não provocar nenhum tipo de reação. Com mais entusiasmo na voz, continuei:
— Pior que foi até divertido, rolou uma adrenalina, sabe? Me esconder da polícia e dos bandidos, me senti o próprio Demolidor. Entrei no clima. Foi bom pra construção do personagem. Então, quando finalmente cheguei em casa e vi a luz da sala acesa, contornei o muro de trás para entrar pela janela. Tinha uns cacos de vidro ali para afastar ladrões, mas eu tinha um macete da época que eu dava umas escapadas com a irmã da minha mulher. Para conseguir ir e voltar sem ser visto, arranquei os cacos de uma parte do muro, que ficava escondida pela árvore enorme que dividia nossa casa da do vizinho, e sabia que sempre podia contar com aquele segredo. Lá fui eu escalar o muro. Escutei música vindo da sala e me apressei. Acabou que errei o lugar por alguns centímetros e cortei a mão, sentindo o líquido quente descer pela luva. Ardeu pra caralho, mas ignorei a dor. Afastei o pano do rosto um pouco pra cima para enxergar melhor e pulei. Meu celular começou a tocar, um toque estridente porque era o toque da minha mulher, e me atrapalhei todo para desligar, soltando um monte de palavrão. Esperei cinco segundos para ver se ela havia me escutado da sala, mas como não houve nenhuma movimentação me esgueirei pelo vão da janela. Escolhi propositalmente a janela do quarto das crianças, porque sabia que a essa hora elas estariam na sala brincando com a mãe ou vendo tevê. O que eu não esperava era encontrar meu cunhado deitado na cama jogando videogame. A única iluminação do quarto vinha da tevê, e ele levou um baita susto quando me viu, jogando o controle para o alto e caindo da cama. Eu me desequilibrei na direção dele, e ele deve ter pensado que estava avançando para atacá–lo ou algo assim, porque…
— O que aconteceu quando você avançou na direção dele? — perguntou o Sombra, e me perguntei se ele escutou o que eu falei, que não tinha avançado mas sim caído.
— Ele puxou uma arma — respondi. — E eu não consegui dizer nada, apenas puxar o cassetete preso nas costas por dentro da calça. Nessa hora meu cunhado arregalou os olhos e disparou.
— E você fez o quê?
— Eu joguei o cassetete no chão e consegui tirar o pano preto da cara.
— Você olhou para onde? – foi a pergunta do Sombra.
— Para o corredor. As crianças vieram correndo para saber do barulho. Eu os vi se aproximar, enquanto eu caía.
— E qual foi a última coisa que você viu?
— Meu nome escrito num envelope, com a letra da minha mulher, sobre um embrulho de presente grande, escondido debaixo da cama dos meninos.
— E você quer uma segunda chance para…?
Eu ri.
— Enfiar a porrada no meu cunhado…
— Aguarde a votação — disse o Sombra, desfazendo–se como fumaça de cigarro.
***
— Eu vi minha família chorar todas as noites desde que o médico me diagnosticou com uma doença terminal. Nem sabia o que significava doença terminal. É como quando eu caía quando muito nova. Quando os adultos se assustavam, eu me assustava. E chorava porque suas expressões me diziam que havia algo de muito errado, e eu me desesperava, achando que não estava mais segura. Era assim que eu me sentia toda vez que ia ao hospital. Às vezes, era só uma dor aqui ou ali, conseguia até me divertir no caminho, com minha robô–cão que minha mãe havia comprado pra mim, mas os adultos agiam como se nada mais pudesse ser feito e, então, eu chorava, porque acreditava neles. A babá–robô que cuidava de mim, quando meus pais não estavam presentes, me tranquilizava e dizia que toda doença tinha cura, todo machucado podia ser tratado e todo futuro trágico podia ser evitado. Quando eu perguntava por que meus pais choravam, ela me explicava o processo biológico da lágrima, então eu cresci acreditando que todas as explicações eram simples, pontuais e isentas de emoção. Demorou até eu entender um pouco sobre emoção.
— E o que você aprendeu sobre emoção?
O Sombra lembrava muito minha robô–cão. Era tão peludo quanto, da mesma cor caramelo, mas não tinha tanto dente, como se fosse um cão velho e doente. Sonata foi a melhor robô–cão que eu tive, e o Sombra devia saber disso. O Sombra devia saber de tudo, como minha babá–robô também sabia. Ela também me fazia perguntas. E muitas vezes nem faziam sentido na hora. Eu só as entendia muito tempo depois, quando insistia num assunto que me incomodava.
— Que ela é ensinada, da mesma forma que aprendi sobre o processo lacrimal. Eu passei a sentir emoção quando a demonstravam para mim. E vi como era feito.
— Você imita sentimentos?
Fiquei em silêncio por um tempo, como fazia com a babá–robô, toda vez que ela tentava me fazer uma pergunta que desviaria o assunto, completando o processo de manipulação das babás–robô. Era útil na educação, e eu gostava de ser manipulada porque percorria caminhos que de outra forma não conseguiria alcançar, mas o Sombra não era meu mestre, nem meu professor, muito menos minha babá–robô. E, apesar de se parecer com minha Sonata, também não era meu cão–robô.
— Minha babá–robô também falava de imitação, identificação, aprendizagem… ela insistia que eu aprendesse mais sobre o assunto. Acho que qualquer experiência afetiva está sujeita a imitação a princípio.
O Sombra sabia que eu não havia respondido sua pergunta e sabia que eu estava contornando o assunto, mas ele nunca interrompia um revelato, e eu sabia que podia dizer o que quisesse.
— Como era sua relação com seu cão–robô?
— Sonata — corrigi–o para que soubesse o nome da minha robô–cão. — O nome dela era Sonata. E ela era a única coisa que eu tinha além dos meus pais e da minha babá–robô. Sonata parou de falar quando fiz cinco anos, pois poderia interferir na minha educação com a babá–robô, mas continuou cantando para eu dormir todas as noites. E quando eu ia ao hospital, ela me acompanhava como travesseiro, como bicho de pelúcia, como amiga, de acordo com minha necessidade. Eu não precisava dizer a ela o que queria, Sonata sempre sabia.
O Sombra movia o rabo de um lado para o outro, na velocidade de um pêndulo, como Sonata fazia, e seus olhos amarelos buscavam sentidos às minhas respostas, embora eu os tentasse esconder. Eu sabia que o Sombra tudo podia ler, ainda assim, era a minha forma de manifestar minha intenção de querer mantê–lo afastado.
— E como seu cão–robô reagiu ao diagnóstico?
Sonata.
— Ela não reagiu. Ela não tinha como entender. Não faz parte do código dela entender o significado de doença terminal. Nem eu sabia o que significava.
— E como você se sentiu? — O Sombra queria saber da minha reação em relação à Sonata e não o que eu senti ao conhecer o diagnóstico, mas eu queria dar voltas.
— Até descobrir o que era doença terminal, imitei as emoções dos meus pais. Chorava. Quando entendi o que significava, que eu não estaria mais por perto para abraçar Sonata, quando ela mais precisasse, nem para reconfortar a solidão da babá–robô, quando ela me enchia de perguntas, senti… emoção.
— E o que você sentiu quando seu cão–robô não reagiu da mesma forma?
O Sombra raramente insistia na mesma pergunta tão direta e imediatamente após ela ter sido evitada. Ele mordia a isca e se deixava ser conduzido como em uma dança. E quando decidia traçar um novo passo fazia a troca dos papéis. O Sombra nunca perdia de fato o controle, mas era prazeroso acreditar por alguns segundos que ele se deixava levar de olhos fechados…
— Dúvida… insegurança.
— E o que você fez depois disso?
— Eu enterrei Sonata…
O Sombra não se importava se sentíamos vergonha, raiva, prazer, remorso, amor ou ódio. Ele fazia perguntas e esperava pelas respostas. Exatamente como minha babá–robô fazia.
— Enterrou?
— Era véspera de Natal, três dias antes da minha cirurgia, e meus pais não estariam em casa depois do almoço. Todo ano eles encomendavam a ceia na cidade vizinha e algumas horas antes do jantar eles iam até lá buscar. Eu estava acostumada a ficar sozinha no meu quarto com minha babá–robô, mas não em casa. Sempre havia um dos dois presente. Essa era minha única chance. Abri um buraco na neve, atrás da casa, Sonata chorou e embrulhou–se com frio, então eu a desliguei e enterrei.
— E o que aconteceu depois disso?
— Sonata ficou enterrada e ninguém perguntou sobre ela. Meus pais nem perceberam que ela não estava mais por perto. Acreditei que eles não se importavam com ela. Três dias depois fui para o hospital, dessa vez sem a Sonata, me operaram e entrei em coma por dois meses para preparar meu corpo. Quando acordei me disseram que agora eu já podia morrer.
— Quem disse?
— Minha babá–robô. Ela me contou o que meus pais não conseguiam. Que eu teria que morrer para ser congelada. Me disse que eu passaria por um processo chamado criogenia humana. E que um dia, talvez depois de alguns ou muitos anos, eles encontrariam uma forma de sintetizar a cura para a minha doença e eu poderia acordar. E seria outra vez saudável.
Respirei fundo e, tarde demais, percebi que, enquanto falava, acariciava o pescoço peludo do Sombra e coçava de leve atrás de uma de suas orelhas. Puxei minha mão e cruzei os braços.
— Então, eles me desligaram… como eu desliguei Sonata. E me congelaram, como eu congelei Sonata. Mas o processo deu errado e eles não conseguiram me animar de novo, apesar de terem encontrado a cura para a minha doença.
— E você quer uma segunda chance para…?
— Enterrar minha babá–robô, que para me ensinar emoção me fez acreditar que Sonata era real…
O Sombra não se importava com sentimentos, mas podia identificar cada um deles. Fiquei curiosa para saber o que havia sido identificado, porque numa esfera de emoções nunca havia aprendido a caminhar sem ser em círculos. Sempre me perdia.
— Aguarde a votação.
***
Minha vez. É a minha vez. Concentração. Preciso de concentração. Respira, um, dois, um, dois. O Sombra vai ouvir meu revelato a qualquer momento agora. Preciso ter certeza das minhas palavras, ele percebe quando não estamos seguros do que dissemos, sei disso, sei bem disso. Ele entra como uma faca, dilacerando o caminho com sua ponta, rasgando o que tiver que ser rasgado, sem freios. Estou tremendo… pare de tremer!
Vejo a luz branca refletida nos olhos negros de um jovem. Meu filho, meu querido filho… O Sombra me observa através do olhar do meu menino. Sua voz é firme e melodiosa como eu me recordava, tão aveludada que paro de tremer, seguro de que estou de volta em casa, nos braços do meu menino.
— Todo ano — começo a falar, ansioso, atropelando as palavras —, na manhã de Natal, eu preparava o café da manhã para o meu filho, ovos mexidos com queijo ralado, como ele gostava, suco de laranja, café com leite, canela e chocolate e cortava duas bananas em rodela em um prato separado. Colocava tudo em uma bandeja e levava para nossa cama. Ele abria um sorriso delicioso, quase tão delicioso quanto seu toque, quando me juntava a ele para saborear um cappuccino ao seu lado, enquanto o observava comer. Ele me dizia o que havia sonhado e eu gargalhava ou franzia a testa nos momentos em que tais expressões fossem apropriadas. Era muito importante para ele que eu reagisse a seus movimentos, me comportasse de acordo com o que era esperado. Ele se sentia muito acolhido e eu o fazia de bom grado. Ele era tão bom menino…
— Por que ele era bom menino?
— Sempre fomos companheiros um do outro. Quando criança eu o colocava para dormir, contava histórias de terror e de humor. Ele ria nas de terror e se espantava com as de humor, era tão especial, tão diferente. Eu o ouvia cantar, e chorava com sua voz delicada. Eu o ensinei a tomar banho, a escovar os dentes, a trocar uma história por uns trocados. Eu o ensinei a comer, a escrever e a transar. Eu o eduquei sozinho, e ele nunca reclamou. Ele sempre me ouviu. Ele sempre me ouviu.
— O que mudou?
Olho para meu menino, a centímetros de distância do meu rosto, tão perto que poderia beijá–lo, sentir seus lábios, sua pele quente, seu toque sedoso. Mas não é meu menino que me observa agora, quase faminto. É o Sombra.
— Eu fiz tudo igual, como sempre havia feito no Natal. Depois do café da manhã, nos levantamos, tomamos banho, juntos, como era de costume, transamos, e ele me pareceu mais bruto que o normal, o que não era um problema, achei que pudesse estar empolgado com o fim de ano, e pedi para ele cantar para mim, enquanto ajeitava os presentes embaixo da árvore, para ele abrir. Todo ano comprava cinco presentes, cada um em uma categoria: Jogos, Inovação, Feito à mão, Em promoção e Surpresa. Ele fazia uma lista de coisas que gostaria de ganhar e eu escolhia a opção que achava melhor, exceto o presente da categoria Surpresa que era diferente de qualquer coisa que estivesse na lista.
— Quais eram os presentes? — O Sombra só pode estar me testando. Pare de tremer…
— O jogo era uma lente de contato com câmera e chip de memória com controle remoto que ele podia gravar até vinte e quatro horas de vídeo e transferir para qualquer monitor. O presente de Inovação foi um xampu que mudava o penteado toda vez que ele usasse, embora eu soubesse que ele raramente usaria porque preferia mantê–los em tranças e coques. O Feito à mão foi um dente de osso de animal pontudo para ele prender no cordão de prata, o Em promoção foi uma peça de roupa acrílica que ele adorava usar na virada do ano, dessa vez comprei uma jaqueta, e a Surpresa foi o convite que eu fiz a ele, quando ele terminou de abrir todos os embrulhos.
— E qual foi o convite?
Imagino se o Sombra faz ideia do quanto sua voz mexe comigo. Do quanto é difícil me manter sóbrio, coerente, diante da imagem do meu menino.
— Eu pedi que ele tomasse a antipílula.
— E o que ele disse?
Começo a tremer ainda mais e a resposta não vem imediatamente. Respiro fundo.
— Ele começou a gritar… não suportava a ideia de voltar a ser criança, a ter cinco anos, agora que havia completado dezesseis, e chorou, me xingando. Meu menino… ele nunca havia me xingado antes. Nunca. Nunca sequer tinha levantado a voz para mim. Tentei explicar que não era um processo doloroso, que poucas pessoas tinham a oportunidade e a capacidade de comprar a antipílula, que ele ganharia dez anos a mais de vida, e raramente alguém tinha essa chance de viver uma segunda infância, mas ele não parava de chorar e bateu a porta do quarto com toda a força, quebrando o espelho pelo lado de dentro. Tentei esmurrar a porta, mas ele foi rápido em mudar o código. Eu o ouvi chorar e me desesperei. Queria colocá–lo nos meus braços, acariciar seu rosto, abraçá–lo bem forte e sussurrar em seu ouvido. Deitei no chão, meu rosto molhado de suor e lágrimas, arranhei a porta e chamei pelo meu filho, mas ele não quis me ouvir. Meu menino, que sempre me ouviu e nunca reclamou.
— E o que aconteceu depois disso?
— Eu ouvi o arranhar de espelho no assoalho… como se ele estivesse arrastando o pedaço de caco de vidro até o outro canto do quarto. Eu me levantei e comecei a bater na porta, gritando até minha garganta falhar. Implorei para ele abrir, para me ouvir, para ser criança outra vez, eu só queria ter meu menino de volta, ele estava tão crescido…
— O que ele respondeu?
— Ele gritou “não!” e abriu a porta. Em vez de caco de vidro, ele segurava o dente de osso pontudo e pulou para cima de mim. A princípio, achei que ele fosse tentar me matar com o presente que dei para ele, meu menino… mas, na verdade, tudo o que ele fez foi me abraçar. Eu o beijei e abracei de volta, o envolvi de tantas formas que éramos um só e eu não sabia mais qual parte do corpo era minha e qual era dele.
— Então, o que você fez?
— Enfiei a antipílula na garganta dele, na primeira oportunidade que encontrei. Ele engasgou mas engoliu, e eu gozei.
Respiro fundo outra vez e, antes que o Sombra me faça outra pergunta, que me obrigará a responder de forma transparente, eu digo, enquanto ainda tenho minha liberdade, ainda que falsa:
— Fiquei a noite inteira acordado, esperando o meu menino voltar a ser criança nos meus braços, vendo a transformação acontecer diante de mim. O milagre da antipílula. Chorei quando seus olhos se abriram e seu rosto, agora sem barba, liso e macio, se contorcer numa expressão de sono deliciosa, tão deliciosa quanto sua boca na minha.
— E o que ele fez?
— Meu filho… ele… ele me rejeitou.
— E o que você fez em seguida? — A voz do Sombra ecoa na minha mente. Balanço a cabeça, garantindo–lhe que vou responder em alguns segundos.
Ah, meu filho…
— Eu o obriguei a se comportar. E a agir como meu filho. E a ser quem eu esperava que ele fosse. E o forcei a me aceitar como pai e como amante. E quando terminei, seu corpo jazia no meu colo, frágil, sem vida. — Meu corpo para de tremer e observo o olhar do Sombra fixo na minha boca como se tentasse agarrar minhas palavras, como se estivesse se preparando para furar minha garganta, exatamente como eu me senti diante do cadáver do meu menino. — O dente de osso pontudo foi a última coisa que vi, perfurando minha garganta, antes de fechar os olhos e abraçar meu filho uma última vez.
— E você quer uma segunda chance para…?
Não importa a máscara que o Sombra vista, ele nunca pisca. Os olhos do meu menino abertos daquele jeito me lembram do cadáver à minha frente, tão mole, tão macio. Eu não quero uma segunda chance. Não farei nada de diferente, se eu ganhar uma segunda chance.
— Nascer de novo, talvez… — acabo dizendo.
— Aguarde a votação.
***
Eles pensam que o Sombra é quem precisa ser convencido, como se ele tivesse poder de voto. Eles pensam que o Sombra é quem decide o vaivém da roda da fortuna, como se o fluxo pudesse ser escolhido por alguém. O Sombra não me fez perguntas. Ele já sabe quem eu sou. E não está interessado no meu passado. Tudo o que ele precisa é olhar para mim para saber quem eu vou me tornar na roda da fortuna. É por isso que temos que passar pelo revelato. Os outros acham que é a nossa chance de se redimir, de entender a morte como ruptura e desejar uma segunda chance, como se houvesse segunda chance. Estúpidos… a morte não é uma ruptura. A morte é o sentido da vida. Mas eles não enxergam.
Vi incontáveis futuros inúmeras vezes… vi possibilidades, caminhos, decisões. Tudo igual e diferente ao mesmo tempo. Não importa o que eu decida fazer, o destino tem uma fórmula cíclica, que instiga a movimentação, modificação e mortificação. Uns terminam antes, outros mais tarde, mas as escolhas são sempre as mesmas, ainda que cobertas por diferentes máscaras.
Vi o Sombra se vestir de meu avô, quem me deu uma casa e uma família ao me adotar no orfanato, me aceitando por completo, apesar das minhas condições, eu o vi se vestir com a pele do meu enfermeiro e primeiro namorado, da minha melhor amiga e até do meu livro favorito Rodas da cadeira de morte. Enquanto eu revelava a minha história, desde a primeira memória até as últimas lembranças de prováveis futuros que eu ainda nem tinha vivido, eu o vi se transformar na minha frente em parentes, amigos e objetos. O Sombra era tudo que nós precisássemos que ele fosse para completar o revelato. Eu não queria uma segunda chance, mas nenhum de nós podia negar a presença dele nem a votação.
Meu Natal não foi diferente dos outros. Eu morri. Eu já havia morrido tantas vezes na minha cabeça… já conhecia tantos futuros e tantas mortes, era irônico pensar que a morte que de fato aconteceu eu não havia previsto. E ainda mais irônico era a maneira com que eu tinha morrido. Desde pequena, eu sonhava com minhas mortes. Me perguntava todos os dias qual delas se concretizaria. Na infância, os acidentes todos que aconteciam na minha cabeça me davam esperanças de que, afinal, eu não precisaria interferir para que minha vida acabasse. A adolescência me alcançou e, com ela, mais possíveis futuros trágicos. Ainda era muito nova na época e estava sempre acompanhada, mas tive minha primeira oportunidade de acabar com minha existência na terceira década de vida.
Não foi difícil. Sempre tive acesso aos meus coquetéis, embora muito limitado por causa da cadeira de rodas, mas finalmente consegui misturar os remédios, como meu futuro havia me ensinado a fazer, ganhando uma parada cardíaca. Cheguei a morrer. Quando os médicos me trouxeram de volta e despertei tremendo de frio foi que me lembrei de quando vi essa cena, alguns anos antes, e irresponsavelmente havia acreditado se tratar de uma cena de morte, não o contrário. Logo depois, conheci meu primeiro namorado, o enfermeiro que cuidou de mim por um tempo, e me manteve viva por mais alguns anos. Naquela época, decidi aceitar meu infortúnio. Abraçar o destino de paralítica, até que alguma escolha me desviasse para a morte.
Passaram–se anos até que eu descobrisse o significado de esperança, quando conheci uma médica especialista em colunas. Ela se tornou minha melhor amiga e prometeu encontrar a cura para a minha paralisia. Nenhum tipo de estímulo funcionava comigo, mas ela continuou tentando. E tentando. Nas minhas visões de futuro, a cadeira de rodas era uma companhia constante. No entanto, como havia pequenos desvios nos destinos de vez em quando, a possibilidade de movimentar as pernas pela primeira vez na vida era a surpresa com a qual eu mais contava.
Na manhã de Natal, o laboratório encarregado pela pesquisa do meu caso ligou para a médica e, depois de me mandar uma mensagem de alerta, ela foi correndo para ver o que havia acontecido. Eles já tinham sintetizado três coquetéis com uma droga experimental que resolveria meu problema, mas até agora nada tinha dado certo. Porém, nenhuma delas havia provocado uma ligação num dia em que todos estariam festejando com as famílias. A mensagem da médica era de pura esperança. Ela me pediu só mais um pouco e terminou a frase com as palavras “pode ser o seu melhor presente de Natal, não posso esperar! Ligo em algumas horas”. Nesse momento, sorri e me dei conta de que meu rosto não conhecia essa expressão. Então, sorri mais ainda.
Algumas horas se passaram e nada de o telefone se pronunciar. Peguei o violino para tocar. Eu já não tocava profissionalmente fazia anos, mas nunca o havia deixado sem cantar. Aquele momento era especial, eu precisava passar por ele fazendo o que mais amava fazer. O som me trouxe lembranças reais e por muito tempo me deixei ser hipnotizada pelo passado. Antes de terminar a canção que eu havia composto para meu avô, olhei para o meu livro favorito sobre a mesa de apoio em frente à tevê, Rodas da cadeira de morte, e fechei os olhos sorrindo mais uma vez. E então, um pensamento me ocorreu. Arregalei os olhos e parei de tocar. Minha mente, sempre povoada e barulhenta, estava vazia. Eu não podia mais ver o futuro.
O som agudo do telefone preencheu a sala e eu acelerei as rodas da cadeira o mais rápido que pude para atender. Minha mão nunca chegou a tocar o aparelho. Eu caí, quebrei o pescoço, bati a cabeça e morri na hora. Não senti dor, mas tive tempo suficiente para ouvir a voz da médica, minha amiga, depois do bip da caixa postal:
— Eu consegui seu presente de Natal! Eu consegui!
***
— Não é unânime — revelou o Sombra. — Mas o voto foi decidido.
Um mundo de impressões digitais…
Eu não acredito que ele usou uma pistola automática…
Sonata…
Meu menino…
É mais uma roda da fortuna…
Sobre a autora: Viviane Maurey é uma escritora carioca, autora do livro #Fui.