Presentes dos Magos
por Anatoly Belilovsky, tradução de Ricardo Herdy
Gregor Samsa numa manhã acordou de sonhos incômodos para se descobrir transformado numa barata gigante. A metamorfose o assustou de um modo casual e momentâneo, assim como poderia ser o despertar em um quarto de hotel estranho, assim como a escuridão na qual ele acordou. Ele flexionou seus membros; sua crisálida fraturou aos estalos, e a luz do sol matinal inundou seus olhos compostos. Ele tentou piscar, mas, embora não conseguisse sentir as pálpebras fechadas, seus olhos se ajustaram à luz muito mais rápido do que os antigos poderiam; em um instante, toda a sala entrou em um foco nítido e claro.
Ele não precisou inclinar a cabeça para ver cada fragmento de quitina cair rodopiando até o chão, brilhando à luz do sol. Ele viu cada grão de pó nos raios de sol inclinados, cada flor no papel de parede, cada amarrotado em sua cama.
A porta abriu–se. A filha de Samsa enfiou a cabeça no quarto. “Oi, papai!”, ela gritou e desapareceu. Ele ouviu seus passos distintamente, e novas harmônicas em seu timbre. Ele tentou memorizar seu rosto como o viu agora, e sua voz.
Em seguida registrou odores, o aroma familiar de sua esposa antes de todos, e, depois deste, o cheiro do café escuro e forte, carregado de açúcar, emanava da cozinha. Havia um tilintar, passos mais lentos e mais pesados, a porta rangeu e abriu por completo.
A esposa de Samsa passou pela porta com o café, segurando com ambas as mãos uma vasilha cheia pela metade. Trouxe lentamente, depositou–a a frente dele no chão, sentou–se na cama. Por um momento, Samsa posicionou–se para apontar a parte mais densa de seus olhos para ela. Ele viu novas rugas, olhos injetados, lágrimas secas. Ele girou e mergulhou seu probóscide no café, tirando–a de foco, mas não fora de vista.
“Eu sei que você não pode falar”, disse ela. Ela olhou para baixo, alisou o cabelo para trás e tornou a olhar para ele. “Eu vou falar por nós dois. Você vai dizer, ‘é só por um mês, você sabe’.” Ela fungou. “E eu pensarei, um mês inteiro. Eu vou imaginar os tubos, os túneis e os perigos, e você vai me dizer que você agora é um profissional altamente treinado e …”
Ela tentou acariciar sua carapaça; suas mãos tremiam, e por um momento seus dedos tamborilaram no tórax inflexível. Sua mão recuou.
“É o pensamento de você estar no subsolo”, disse ela. “E, honestamente, de você não estar aqui. Eu queria que você não tivesse que fazer isso. Você sempre se preocupou comigo voando, e eu sempre disse que eu sou a melhor piloto no céu. Eu sempre prestei atenção a tudo, sempre sabia o que todos estavam fazendo.” Apertou a boca. “Exceto você.” Suas mãos vagaram como se estivessem procurando por algo familiar: instrumentos, controles de propulsão, punhos; qualquer coisa.
“Por que não… Oh, inferno, eu sei por que você não me disse. Você queria quitar a casa até dezembro, então eu não teria que pegar a corrida de Saturno. Eu também não te disse que desisti. Eu queria que fosse uma surpresa, que nunca mais ficaríamos separados por todo aquele tempo de novo. E você fez o mesmo. Ambos adoramos surpresas. Lembra–se de como eu te fiz a proposta?
Gregor lembrou. Um suborbital fretado para Paris. Vinte minutos de um balístico deveria ter sido tempo suficiente, ela pensou: ela iria propor, ele aceitaria, então fariam amor em zero–G. Com exceção dos dezenove minutos e três quartos de enjoo espacial dele. Eles conseguiram, finalmente, na Suite Real no Hotel George V, mas ele nunca se livrou da sensação de que ela ficara decepcionada. Você deveria vê–los sem peso, ela tinha dito com pesar, apalpando seus seios enquanto se vestia na manhã seguinte.
“E você vai me dizer que esse corpo é praticamente indestrutível, nem precisa respirar ou comer”, continuou ela, a voz fraquejando, “e a remuneração pela manutenção do reator é excelente.” Ela pausou para limpar uma lágrima. “Melhor do que qualquer trabalho de escritório que eu pudesse conseguir. Não é fácil encontrar trabalho para uma ex–espacial com uma família para alimentar”, ela terminou com um sussurro.
Eu deveria ter dito algo, pensou Samsa, ontem à noite. Eu deveria ter beijado ela.
Uma batida na porta. A esposa de Samsa sorriu. “Você a criou direito. Sempre bater primeiro quando seus pais estão juntos no quarto.” Ela se levantou. “Eu sei o que você diria se pudesse”, disse ela. “Você diria que me ama, e que está fazendo isso por nós. E eu diria que eu também te amo. E vou sentir sua falta. Muito. Não pensarei em nada o tempo todo.”
Sim, você vai, pensou Samsa. Você pensará em voar de um jeito que nunca pensou antes, assim como eu nunca pensei em ar até parar de respirar.
Ela se dirigiu à cozinha com a marcha insípida de uma espacial, mas, embora ela sempre fosse estranha sob gravidade, pela primeira vez Samsa pensou em um ditado há muito esquecido: “… como se caminhasse sobre lâminas tão afiadas que o sangue inevitavelmente escorreria”.
Ela parou na entrada com uma mão no batente, virou–se para encará–lo. Ele podia vê–la perfeitamente bem sem mover a cabeça, mas parecia o correto levantá–la. Ela flutuou até o foco total novamente: pele porosa, bochechas flácidas; mas ele também podia vê–la, por inteiro. Ela era tão linda.
“Estou feliz por ter tido essa conversa”, disse ela, esboçando um sorriso. “Tenha um bom dia no trabalho, querido”.
Samsa assentiu. Era o mínimo que ele podia fazer. E o máximo.
Anatoly Belilovsky nasceu no que é agora a Ucrânia e aprendeu Inglês nas revistas da Star Trek. Ele conquistou seu ingresso numa faculdade dos EUA ao ensinar russo enquanto se especializava em química, e tem sido pediatra em Nova York nos últimos 25 anos, em uma prática em que o inglês é o quarto idioma mais falado. Ele até agora vendeu histórias de FC para Andromeda Spaceways, Ideomancer, o Livro de Imersão de Steampunk e outros mercados.