Prenda de Natal

por Ana Cristina Luz

Questionado sobre o facto de estarmos sozinhos no universo, alguém disse um dia que, se assim fosse, seria um imenso desperdício de espaço. A realidade conhecida pelo comum mortal é que existe uma imensidão por explorar, mundos com os quais não sonhamos e que algures, bem longe da nossa galáxia, poderão existir outros planetas ocupados como o nosso, outras civilizações com os seus princípios e modos de vida, provavelmente semelhantes no seu âmago aos nossos mas com tecnologia mais avançada do que a nossa, com meios que lhes permitam viajar no espaço e, quem sabe, no tempo, num desafio de tudo aquilo que conhecemos. E assim andamos a perscrutar o universo, na esperança de encontrar um sinal de vida num outro planeta, para podermos dizer que, afinal, não estamos sós

O que ninguém sabe, ou melhor, suspeita sequer, é que bem perto de nós, numa dimensão paralela, que se toca frequentemente com a nossa, existe uma espécie a que não poderemos designar de humana, pois não possui forma física como a conhecemos, mas que em tudo o resto é semelhante à nossa, com seres que interagem e coexistem numa realidade que acompanha a nossa. São seres conhecidos por Sentinelas, nome que adoptaram, pois o seu trabalho é vigiar a raça humana e a evolução da vida na terra. A sua interferência ao longo dos tempos tem passado despercebida, sem qualquer contacto visual, apenas interferindo anonimamente em determinadas situações. O que muitas vezes o homem designa por verdadeiro milagre, mão de um deus qualquer ou golpe de sorte não passa do resultado da intervenção das Sentinelas que, em casos extremos podem intervir e mudar o rumo dos acontecimentos. Apesar de os seus poderes não serem absolutos ao ponto de poderem dar ou tirar a vida a qualquer espécie existente na terra, eles podem viajar no espaço e no tempo, e agir sobre os acontecimentos, influenciando desta forma o desfecho de uma situação. Para evitar que esse poder seja usado arbitrariamente, existem regras e restrições ao que cada um pode fazer, não podendo os Sentinelas agir a seu belo prazer. As acções deverão ser submetidas para aprovação do Conselho, que avaliará as consequências da intervenção e autoriza ou não a sua execução.

A intervenção de cada Sentinela é escolhida arbitrariamente e consiste na observação do comportamento de um grupo restrito de humanos. Têm como objectivo vigiar e controlar o grau de animosidade existente num determinado grupo e as probabilidades de ocasionar um conflito. É elaborado um relatório pelo Sentinela que tomou conta do caso, sendo–lhe depois atribuído outra tarefa. Normalmente, os Sentinelas operacionais, apesar de terem poderes para o fazer, não interferem no decurso normal dos eventos, ficando esse papel para os Supervisores. Mas existem casos documentados de Sentinelas que ultrapassaram as suas funções e interviram, tendo sido depois objecto de processo disciplinar que, raramente culmina numa suspensão, mas que de qualquer forma, serve de aviso para que a linha do tempo não seja violada.

É o caso do Sentinela 2187, que está, neste momento, a braços com um inquérito por dupla infração e suspenso até à conclusão do processo. Foi–lhe atribuida a missão de monitorizar os habitantes de um bairro problemático de uma grande cidade. Um dormitório onde ninguém se conhece, apesar de viverem paredes meias. Depois de inspecionar a área que lhe calhou e observar os seus habitantes, a sua atenção focou–se em três mulheres que tinham perdido recentemente os seus companheiros. Uma delas, ainda nova, ficou com dois filhos a seu cargo. O marido morreu num naufrágio, o corpo nunca apareceu e as esperanças de o voltar a ver com vida são muito remotas, dada a localização do acidente. Sem colete salva vidas, não teve qualquer hipótese de lutar contra um mar revolto. Uma outra mulher, mais velha, já com filhos adultos, perdeu também o marido durante uma viagem a um longínquo país no coração de África. Uma emboscada roubou–lhe a vida. O corpo também não apareceu, largado pelos meliantes no meio do mato, num local inacessível à equipa de salvamento que bateu as imediações do confronto. A terceira mulher perdeu o marido de forma natural. Uma doença prolongada teve o desfecho esperado, deixando–a sozinha, sem familiares próximos.

Tal como a maioria dos habitantes daquela parte da cidade, estas três mulheres não se conheciam. Sentinela 2187 achou que seria interessante fazer uma experiência e verificar como reagiriam três pessoas na mesma situação se elas se conhecessem. Não lhe foi difícil interferir no funcionamento normal do elevador para fazer com que uma das mulheres, atrasada para o trabalho, conseguisse entrar nele, onde estava a jovem mãe com os dois filhos. Uma súbita paragem, mais uns segundos de espera e a terceira mulher apanhou mesmo à justa o mesmo elevador. Trocaram um cumprimento afável, surpreendidas por repararem umas nas outras pela primeira vez. Uma nova e súbita avaria, que as fez ficar paradas entre andares, levou–as a conversarem umas com as outras, por entre risos nervosos, conversas soltas e a descoberta de que viviam no mesmo prédio há anos e não se conheciam. Combinaram tomar um chá num desses dias em casa da mais velha, tinha todo o gosto e até lhe ia fazer bem ter gente em casa, pois havia muito tempo que apenas ela ocupava aquelas divisões que se tinham tornado grandes demais.

No dia combinado, a mais velha das mulheres recebeu os visitantes com um lanche, preparado com todo o carinho e alguma expectativa. A mulher mais jovem apresentou–se com os filhos e um bolo, alegando que os filhos eram muito gulosos. Era visivelmente uma desculpa para que a velha senhora não se sentisse melindrada com o gesto. Veio depois a outra mulher, que lhe trouxe um ramo de flores do seu pequeno jardim que ela mantinha na pequena varanda, e do qual cuidava com todo o desvelo.

Cumpridos os cumprimentos da praxe, a conversa soltou–se e a tarde correu em perfeita harmonia. Pareciam amigas de longa data que se encontravam depois de muitos anos de afastamento. As histórias foram contadas com lágrimas, sorrisos e muita cumplicidade.

No final da visita, a jovem mãe reparou num cesto com algumas agulhas e lã. A anfitriã disse–lhe que tinha por hábito fazer tricot, um passatempo que ela adorava e que a ajudava a passar as horas, mas que, infelizmente, ela estava quase a ter de deixar, pois não tinha dinheiro para as lãs. As duas mulheres ofereceram–se prontamente para a ajudar, ao que a senhora respondeu que não era preciso, que guardassem o dinheiro que lhes faria falta, ainda por cima a uma mãe sozinha com dois filhos.

Despediram–se, com a promessa de repetirem o lanche em casa de cada uma e com a alegria de terem encontrado alguém que as fazia não se sentirem sozinhas.

Sentinela 2187 poderia ter ficado satisfeita com o resultado desta reunião, pois apesar das suas perdas pessoais, a harmonia reinou naquele encontro de três desconhecidas. Mas um detalhe fez com que Sentinela 2178 violasse a lei e interferisse na linha do tempo.

No dia seguinte, a velha senhora teve duas visitas. No final da tarde, a jovem mãe bateu–lhe à porta, acompanhada pelos filhos, que traziam nas mãos duas camisolas de lã.

– Tome, pode desmanchar e usar o fio, fui eu que as fiz, mas estão praticamente novas, o meu marido mal as usou. E agora já não lhe fazem falta. Assim sempre servem para alguma coisa.

A mulher agradeceu, mostrando–se comovida. Ainda não tinha pousado as camisolas quando ouviu novamente baterem–lhe à porta. A outra mulher trazia consigo alguns novelos de lã, eram de camisolas do marido, que ela desmanchara para lhe oferecer.

A velha senhora agradeceu, igualmente comovida. Perante aqueles gestos, decidiu fazer alguma coisa para retribuir. E decidiu fazer cachecóis para as duas mulheres e gorros para as crianças. Avizinhava–se o Natal e seria uma boa prenda para quem tinha sido tão amável com ela.

Tocado por estes gestos, Sentinela 2178 decidiu que tinha que fazer alguma coisa para recompensar todos estes sinais de humanidade. Trazer os entes queridos de volta foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu. Iriam surgir na véspera de Natal, por ser uma altura em que todos oferecem tudo a toda a gente, numa troca nem sempre movida pelos melhores motivos. Mas a genuidade de todos aqueles gestos merecia ser recompensada.

Em relação ao marido da velha senhora, nada podia fazer, pois morrera de morte natural de Natal e tinham–lhe sido prestadas todas as homenagens, repousando neste momento num cemitério onde a mulher se deslocava várias vezes colocar flores na campa.

Em relação aos dois outros homens, a situação era relativamente fácil, Um bafejar numa onda, que ganhou mais força e derrubou um colete salva vidas aos pés do pai das duas crianças, levando–o a colocá–lo por instinto, bastou para mudar a sua sorte. Um nome gritado no meio de uns arbustos fez com que o dono do carro que acabara de se imobilizar devido a um furo, na berma de uma estrada pouco movimentada, se afastasse da viatura e, a coberto da vegetação, pudesse observar, em segurança, um grupo de bandidos armados a saquearem–lhe o carro, onde ficou horas perdidas, até ficar sozinho e poder fazer–se ao caminho, evitando mostrar–se com receio de que os meliantes voltassem. Dois pequenos gestos, que valeram a Sentinela 2178 um processo por dupla infração.

Enquanto isso, num bairro dormitório de uma grande cidade, duas famílias ainda não acreditam na sua sorte. Dois homens, que tinham sido dados como mortos em dois acidentes separados, um em alto mar e o outro nos confins de um país em África, conseguiram, ao fim de muitos dias, dar sinais de vida, através de um simples telefonema. Na véspera de Natal, durante o jantar da consoada.