O Girasol Negro
por Michel Peres
Direção Central de Segurança Pública – DCSP
Papeete, 29/05/2053
Brigada de Segurança Urbana e Investigação
Organizei tudo quanto me foi possível juntar a respeito do curioso caso do senhor Miguel Agagê. As páginas do relato a seguir fazem parte de um diário encontrado no apartamento alugado por este no quartier Juventin, na periferia de Papeete. Junto ao diário, foram encontradas algumas peças de roupas, uma arma de choque e um Mace.
Diversas páginas desse diário foram arrancadas e outras se encontram completamente ilegíveis (as digitalizações vão em anexo).
Não creio que algo possa ser feito acerca desse caso.
Arquive–se.
Anituavau Mauu
Inspetor–chefe.
Quarta–feira, 7 de março de 1888
Cheguei em Arles depois de quase perder o último trem em Paris. Quinze horas de viagem até essa cidadezinha! Entre um cochilo e outro, pude observar a paisagem da Provença deslizando pela minha janela como um borrão.
Logo que desembarquei, pedi informações a um funcionário da estação. Ele provavelmente estranhou meu sotaque, pois fez uma expressão curiosa enquanto me escutava. Apesar disso, foi gentil e explicou com paciência o caminho. “Siga até a Place Lamartine. Depois dela, continue reto. A Rue Cavalerie fica em frente.”
Difícil de acreditar, mas aqui faz tanto frio quanto Paris. Fico pensando qual deve ter sido a reação de Vincent. Se não me engano, ele chegou aqui no dia 20 de fevereiro. Eu poderia ter aparecido na mesma data, mas seria desnecessário. Sei que ele só começará a trabalhar daqui a dois dias, quando o clima começar a esquentar. É um sujeito friorento o senhor Vincent Van Gogh.
Aluguei um quartinho na Rue Voltaire, depois de ver meu plano de me hospedar no mesmo hotel de Vincent— o Carrel — falhar. Ao que parece, ele alugou os dois últimos quartos disponíveis de lá e usa um deles como ateliê.
Apesar desse contratempo inicial, meu quarto na Voltaire é próximo ao Carrel. Quarto com varanda e café da manhã a quatro francos a diária. Uma pechincha.
Sexta–feira, 16 de março de 1888
Sei que essa atitude quebra os protocolos que regem a minha vinda até aqui, afinal, devo evitar qualquer tipo de contato direto. Mas em uma cidade de apenas vinte e três mil habitantes chega a ser irritante não conseguir encontrar uma pessoa, ainda mais um estrangeiro que, com seus modos diferentes, já está se tornando a sensação local. É por isso que fui hoje ao Carrel e sondei discretamente a recepcionista. Disse–lhe que eu era um negociante de tintas e perguntei se ela não conheceria algum artista que pudesse se interessar pelo meu material. Ela falou sobre um senhor Van Góqui, que se dizia artista, mas ela disse não acreditar muito nele. Perguntei por que dizia isso, o que a recepcionista me respondeu afirmando que os quadros dele pareciam mais manchas do que pintura. “Quem é que usa caniços para pintar?” ela disse.
Os caniços do Ródano. Mas é claro! Em sua estadia em Haia, Vincent tinha usado caniços para aplicar pinceladas grossas e fortes em seus quadros. O rio Ródano aqui em Arles possui caniços que com certeza devem tê–lo impressionado. Saí do hotel às pressas e desci a Saint Cylle, em direção à Quai de la Garre.
Passei o resto do dia à espera, andando à beira do Ródano. No entardecer, homens chegaram até as margens do rio, encostando barcaças de carvão; o Ródano parecia feito de ouro e as nuvens morriam vermelhas no horizonte. Vincent não estava lá para ver.
Segunda–feira, 2 de abril de 1888
Finalmente o vi!
Encontrei ele numa área com diversos pomares, todos em flor por causa da primavera. Vincent trabalhava na pintura de um desses pomares (um grupo de três, na verdade).
Não pude acreditar quando o vi. O vento fazia o cavalete balançar, obrigando–o a prendê–lo ao chão por meio de estacas. Uma hora, o vento começou a soprar tão forte que fez o cavalete se soltar e cair no gramado. Ele parecia estar tomado por um espírito, pois se ajoelhou no chão e continuou a pintar ali mesmo!
Aproximei–me, mas ele não pareceu dar pela minha presença. Mesmo nos momentos em que cheguei bem perto, ele continuou compenetrado na pintura. Suas pinceladas eram rápidas, mas sem impastos, produzindo traços rápidos e delicados. Talvez fosse a falta de tinta que o obrigasse a ser mais econômico ou talvez fosse apenas efeito da paisagem. Isso pouco importa. O resultado era belo.
Não havia mais ninguém ali. Apenas eu e ele. O sol penetrava por entre os galhos dos pomares, fazendo as folhas assumirem diferentes tons de verde e amarelo. A primavera tinha ainda um longo caminho pela frente, mas agosto logo chegaria, trazendo o quente verão arlesiano, céu azul e girassóis.
Quinta–feira, 31 de maio de 1888
Estive hoje no ateliê de Vincent. Aproveitei o fato dele ter viajado para Saintes–Maire–de–la–Mer, e fui à procura do quadro que me trouxe até esse cidade, o quadro que o senhor Golbery tanto quer: o girassol negro.
Eram duas da manhã quando saí do meu quarto. Não havia uma única alma na Voltaire e a cidade se encontrava em silêncio. Melhor chance que essa eu não teria. Fui até a Place Lamartine, do lado de fora dos muros da cidade. Lá, no número dois, ficava a casa que Vincent havia alugado depois de sair do Hotel Carrel. Havia um bar na esquina, mas já estava tudo fechado ali.
A sensação que tive foi a de ter invadido a caverna de Ali Babá. Espalhadas pela casa, estavam as dezenas de quadros que ele tinha pintado até então em Arles; visões do Ródano, uma infinidade amarela de campos de trigos, pomares numa quantidade que a casa parecia estar florida.
Porém, nada do que vi naquela casa indicou que ele estivesse a trabalhar em algum girassol, quanto mais um girassol negro. Com o auxílio de uma lanterna, chequei cada uma das pinturas e dos croquis. Não vi as cores terrosas que Elias usara para se referir ao suposto quadro.
Fui embora depois de ouvir movimentações no quintal. O girassol negro talvez fosse apenas um mito.
Segunda–feira, 10 de setembro de 1888
Quatro meses despercebido e pus praticamente tudo a perder. Devia ter tido o sangue mais frio, manter–me na posição de mero observador, mas não! E, para piorar, ele agora ele quer me ver.
Acontece que fui pego desprevenido. Estive hoje no café Le Soir, e Vincent apareceu por lá também. Ele chegou por volta das 20h15 carregando seu material de pintura e usando um chapéu de palha, chapéu esse encimado por várias velas. Fiquei a bebericar do gim barato que serviam ali, enquanto ele acendia uma a uma as velas do chapéu e pôs–se a trabalhar.
Tudo ia bem até o momento em que ouvi risadas vindas de uma das mesas. Três rapazes que já estavam bebendo desde a hora em que eu cheguei começaram a caçoar de Vincent. Não dei importância de início. O problema aconteceu quando um deles jogou uma garrafa de vinho, que se espatifou ao lado de Vincent, sem acertá–lo; ele não moveu um centímetro e continuou a pintar. Afrontados com a sua calma, os rapazes se levantaram e foram tirar satisfação. Um deles tomou o seu chapéu, enquanto outro ficou a cutucá–lo. Ele ficou a resmungar baixo, até o momento em que um dos rapazes lhe empurrou no chão.
Aquilo foi demais. Saí da minha mesa e fui na direção deles. Um dos rapazes estava prestes a chutá–lo, quando, disfarçadamente, saquei a arma de choque do bolso. Os dentes elétricos triscaram no ar, e atingi dois deles no pescoço, que caíram no chão, estrebuchando. Sem dizer nada, virei–me para o terceiro, mas ele correu para longe. Guardei a arma de volta e perguntei a Vincent se ele estava bem.
Ele olhou os rapazes retorcendo no chão e então me encarou. “Sim, eu estou,” ele respondeu num francês carregado.
Ajudei ele a se levantar. “Qual seu nome?”
“Van Gogh. Vincent Van Gogh. E o seu?”
“Miguel,” respondi, percebendo que uma multidão começava a se juntar no café. “Certo, senhor Van Gogh. Algo me diz que é melhor irmos embora.”
“Concordo.”
Apanhamos o cavalete e o quadro e fomos embora, dobrando a esquina na rue des Arènes. Ele ficou agradecido. Disse que havia quase sete meses que estava na cidade e não conhecia praticamente ninguém.
“Não existem muitos estrangeiros nessa cidade e os arlesianos são um pouco provincianos, se é que o senhor me entende.”
“Eu entendo, senhor Van Gogh.”
Ele sorriu. “O senhor pronuncia meu sobrenome perfeitamente. Fala holandês?”
“Não, mas entendo um pouco de alemão.”
“A pronuncia é parecida… o que faz aqui em Arles? Se é que me permite a intromissão.”
Fui obrigado a mentir nessa hora. O que mais poderia fazer? Explicar a ele que vim do futuro para roubar um quadro que ele parecia nem ter pintado ainda?
“Historiador,” foi a minha resposta. “Pesquiso a arquitetura romana no sul da Gália.”
“Fascinante. O senhor chegou a ir até a Arena?”
“Ainda não.”
“Pois vá. Aos domingos eles tem touradas. São touradas simuladas, mas ainda assim é uma grande diversão.”
Conversamos até chegarmos à Place Voltaire. Entrei na minha pensão, enquanto Vincent seguiu para o quarto que alugara no Café de La Gare. Ele me convidou para ir no seu ateliê no dia seguinte, e eu aceitei.
Terça–feira, 11 de setembro de 1888
Acordei hoje com alguém batendo na minha porta. Era a dona Marthe, a senhoria.
“Desculpe incomodá–lo, senhor Miguel, mas um homem está aí para lhe ver.”
“Quem?”
Ela inclinou para frente e sussurrou: “Un flic.”
“Diga que já estou descendo,” respondi.
No saguão, o policial me esperava em pé. Ele usava uniforme preto, tinha um bigode grosso e uma sobrancelha junta que o premiava com uma expressão carrancuda.
“Senhor Miguel Agagê?” ele perguntou para se certificar.
“Sim. Você…”
“Policial Alphonse Robert.”
“Muito bem, senhor Robert. Em que lhe posso ser útil a esta hora da manhã?”
Ele se empertigou, mexendo o bigode. “Vim aqui para tratar de uma denúncia de baderna e agressão.”
“Estou ouvindo,” respondi, sentando em uma das poltronas e apontando para a que estava logo atrás dele.
“Estou muito bem assim,” ele disse. “Você por acaso esteve ontem no Café Le Soir?”
“Estive,” respondi, compreendendo do que se tratava. “Algo a ver com aqueles três meliantes?”
“Meliantes? Um deles é membro de uma das famílias mais tradicionais da cidade e os outros são os filhos do prefeito. Pertencem à nata arlesiana.”
“E parecem ser grandes apreciadores de absinto também.”
Ele cerrou os olhos e me encarou. “Você espancou aqueles rapazes?”
“Essa foi a história que lhe chegou?”
“Essa foi a história que Danton Villier nos contou.”
“E quem seria esse adorável caluniador?”
“Herdeiro do Château Bretodeau, a maior vinícola da região. Ele assistiu aos dois amigos serem brutalmente espancados.”
“Ah, então ele é o rapaz que saiu correndo…”
“Então confessa que os atacou.”
“Em termos,” respondi. “Não houve nenhum espancamento. Apenas os afastei, pois estavam a atormentar o pobre pintor que trabalhava no café.”
“O holandês…”
“Exato,” respondi. “Eu estava no café quando esses três rapazes o atacaram. Fui até eles, apartei a briga e ajudei manter a ordem. A polícia de Arles deveria me agradecer.”
“A polícia não precisa de favores. Quanto mais de estrangeiros.”
“Parece justo,” eu disse, limpando uma poeira invisível do ombro. “O senhor ou alguém da polícia certamente examinou os corpos desses rapazes. Digo, para validar a versão do espancamento.”
Seus lábios tremelicaram. “Acredito que sim. Mas posso confirmar.”
“Ótimo,” respondi. “É sempre bom termos nesses casos um esclarecimento mais… scientifique.”
“Certamente,” ele latiu. “Até lá, peço que nos avise se for sair da cidade. Até termos um esclarecimento mais… scientifique.”
Dei a minha palavra e nos cumprimentamos. Pude sentir a pressão em meus dedos. Leve, mas indicativa.
Terça–feira, 23 de outubro de 1888
O pintor Gauguin chegou hoje. Vincent foi até a estação para apanhá–lo. Parecia radiante e esperançoso com o seu sonho de transformar aquela pobre casa amarela em um reduto de artistas. Um sonho em vão, sei disso. Apenas temo por ele. Sabia o quanto era impressionável e agora que o conheço isso se tornou mais evidente.
Sexta–feira, 1 de fevereiro de 1889
Fui com Vincent hoje ao anfiteatro e passamos a tarde inteira e conversar sobre Roma e literatura. Foi sem supressa que descobri que ele admira os trabalhos de Zola. Todos os pintores dessa geração admiram esse escritor! Cézanne, Bernard, Lautrec, Gauguin, todos eles leram “O Germinal”. Porém, a conversa que tivemos que realmente me interessou foi outra; como se segredasse os diagramas de uma usina nuclear, ele me contou que estava trabalhando em uma nova série de girassóis…
“Mas a época dos girassóis já passou,” comentei, ansioso.
“Sei disso, mon cher,” disse Vincent.
“Então?”
“Estou pintando de memória. Ou me baseando em girassóis que já pintei. Por acaso lhe contei sobre a última carta de Gauguin?”
“Depende de qual carta. É a carta em que ele pede que você lhe dê os girassóis?”
“Essa mesmo.”
“Ah, já me contou sim. Muito sabido, o senhor Gauguin, não?”
Ele olhou intrigado para mim. “Sabido? Por que diz isso?”
É evidente que àquela altura Gauguin jamais poderia adivinhar que o “Girassóis em um vaso” chegaria a valer uma fortuna. Gauguin, o mesmo que, após uma curta temporada em Arles, foi embora após Vincent ter cortado a própria orelha em dezembro do ano passado. A insistência com que Gauguin pedia de presente aquele quadro era um indicativo, pelo menos para mim, de que ele reconhecia o valor da obra; algo que, infelizmente, Gauguin nunca confessou cara a cara com Vincent e que poderia, quem sabe, tê–lo salvo de seu destino trágico. Afinal, tudo o que ele ansiava era por um pouco de reconhecimento do seu esforço. E se esse reconhecimento viesse de alguém que ele admirava, seria como um bálsamo para um ego já tão castigado. De qualquer maneira, foi infantil e amador da minha parte ter feito aquele comentário. Desconversei, pedindo a ele que me mostrasse depois os tais novos quadros. Quem sabe o girassol negro não está entre eles?
Terça–feira, 12 de fevereiro de 1889
Dizem que um homem não consegue assinar seu nome duas vezes do mesmo jeito. Acredito que o mesmo deve valer para pinturas. Digo isso porque vi hoje os girassóis que Vincent havia comentado. Para minha decepção, nenhum deles era negro. Na verdade, não passavam de reproduções, reproduções dos girassóis que ele pintara no ano passado e que, agora, iria enviar de presente para Gauguin. As reproduções, apesar de também serem bonitas, não têm nem de longe a força e a beleza dos originais. É como se ele as tivesse pintado por obrigação, concretizando apenas um pálido vislumbre dos originais.
Mais à noite, voltei à sua casa. Como Vincent ainda está deprimido, havia combinado de levá–lo para jantar no café Vénissac. Ele tinha surtado de novo na semana passada e, desde então, perambulava pela sua casa como um zumbi ou ficava horas prostrado na cama. Pensei que um pouco de ar fresco e uma comida leve poderiam ajudá–lo. Jesus, não poderia estar mais enganado. Logo que entrei, fui surpreendido por um cheiro forte de tabaco e café. Sentado na sala sozinho, ele me observou por trás da luz de um candeeiro. Seu rosto estava vermelho e me aproximei devagar.
“Algum problema?” perguntei.
Sem dizer uma palavra, ele apenas estendeu uma carta para mim. Era uma notificação da prefeitura de Arles. Anexo a ela, uma petição para que ele fosse internado de vez no hospital da cidade ou que fosse enviado para o sanatório em Aix–en–Provence. No final, a assinatura de alguns moradores da cidade.
“Mas isso é ridículo.”
Ele assentiu, mordiscando freneticamente seu cachimbo.
“Tudo bem que você anda mesmo exagerando na bebida,” eu disse, apontando para a notificação, “mas aqui também fala que você assedia mulheres na rua. Você nunca fez isso!”
“Os arlesianos são supersticiosos. Eles acreditam que a pintura e a loucura estão diretamente associadas. Como os árabes.”
Dei um muxoxo. “Acho que nem Freud pensaria algo tão obscuro.”
Ele tirou o cachimbo da boca e arregalou os olhos. “Frói?”
“Esquece,” eu disse, pousando a carta na mesa. “E esqueça essa carta por enquanto.”
“Esquecer? Como esquecer? Eles me descrevem como um monstro.”
“E se você mudar de casa? Você pode se instalar em um lugar mais afastado do centro, um lugar onde possa pintar em paz. Eu lhe ajudo se quiser.”
“Não sei se conseguiria me mudar de novo, mon cher,” ele disse. “Estou tão cansado…”
Fomos jantar em seguida. Devíamos ter ficado em sua casa. Assim que chegamos ao Vénissac, Vincent não apenas se recusou a comer como pediu uma dose de absinto atrás da outra. Depois do quarto copo, consegui convencê–lo a comer pelo menos uma sopa de peixe, mas, assim que o prato chegou, ele começou a dizer que queriam envenená–lo e que todos ao nosso redor já estavam envenenados. Pediu mais absinto, mas o garçom se recusou a servir. Quieto, começou a balbuciar sozinho. Como que tomado por um espírito, ele levantou da mesa e foi correndo de volta para sua casa. Fui ainda até lá, mas encontrei a porta trancada.
Sexta–feira, 15 de março de 1889
Estou preso há dois dias e só estou escrevendo essa nota porque encontrei um pedaço de papel e um toco de carvão debaixo da cama da minha cela. Minha mão ainda está inchada por causa do soco e temo ter quebrado algum osso. Não sei por quanto tempo ficarei preso. Pelo menos nenhum guarda veio até aqui para ´conversar` comigo. Ainda.
NOTA DO INSPETOR–CHEFE
A última anotação foi colada na página seguinte à entrada do dia 12/02/1889 (as páginas entre esse dia e o dia quinze de março foram arrancadas). A próxima anotação a vir em seguida já data do ano de 1890, o que nos fez supor que Miguel Agagê teria ficado preso por cerca de doze meses.
Entrei em contato com a polícia de Arles (FRA) e — parece difícil de acreditar — mas eles realmente possuem a ficha de um homem chamado Miguel Agagê e que ficou preso na delegacia da cidade entre março de 1889 e março de 1890. Eles me encaminharam uma digitalização da ficha de prisão (em anexo). Nela é possível ver a assinatura do senhor Joseph d’Ornano, chefe de polícia de Arles no final do século XIX.
Estaríamos diante de um louco ou de um ´viajante do tempo`? Sinto–me encabulado em usar essa expressão, mas a uso por não conseguir pensar em outra mais adequada.
Quinta–feira, 13 de março de 1890
Faz duas horas que estou solto e já me sinto um pária nessa cidade. As pessoas evitam falar comigo, os comerciantes se recusam a me vender qualquer coisa e as beatas viram o rosto quando me veem passando pela rua. Tenho a impressão de que até o Mistral está contra mim, pois sempre que viro a esquina ele sopra mais forte.
Vincent está num asilo em Saint–Rémy (daqui a dois meses irão transferi–lo para Auvers–sur–Oise). Se eu não tivesse interferido naquele dia, ele talvez ainda estivesse em Arles e eu não passaria um ano preso.
Mas o que mais eu poderia ter feito? Todo aquele populacho ao redor da casa de Vincent, gritando e apontando como se estivessem diante de um zoológico. Aquilo talhou meu sangue! E quando vi aquele imbecil do policial Robert arrastá–lo pela praça como um cavalo não pude me controlar. Nem por um segundo me arrependo do soco que lhe dei nas fuças. Lembro até hoje da expressão dele, encarando a mão como se estivesse vendo o próprio sangue pela primeira vez. Acabou que minha pequena intervenção não alterou em nada o fluxo dos acontecimentos. Parece que o contínuo espaço–tempo é menos frágil do que dizem.
NOTA: o irmão de Vincent trabalha em uma galeria em Paris. O Girassol Negro talvez esteja lá.
Paris, Sábado, 15 de março de 1890
Monets, Cézannes, Renoirs, Gauguins, Van Goghs, Bernards, Degas, Lautrecs, Bonnards, Vuillards. Todos estavam lá. Os bandidos, os criminosos, os assassinos, como a imprensa parisiense os chamava. Era hilário pensar que em pouco tempo todos marchands de Paris estariam se matando por uma lasca de tinta daqueles quadros.
A galeria em que Theo Van Gogh trabalha — a Boussoud, Valadon e Cie — fica no número 19 da Boulevard Montmartre, um reduto frequentado por artistas e boêmios. Todos os quadros que vi lá estavam organizados de maneira elegante nas paredes e pude sentir um cuidado feminino. Theo me explicou que sua esposa o ajuda na organização.
Theo é mais novo que seu irmão. Percebi um ar esperançoso em seu rosto, a confiança de alguém que enxerga algo que os outros ainda não conseguem ver. Ficou bastante espantado ao notar que eu conhecia a maioria dos novos pintores. Conversamos um pouco sobre Cezánne e então lhe perguntei sobre a Exposição dos XX que tinha acontecido em janeiro em Bruxelas.
“Não poderia ter sido melhor,” foi a sua resposta. “As pessoas lá têm um gosto mais refinado do que os meus clientes aqui em Paris. Vendi praticamente todos os quadros que levei.”
“No artigo que li sobre a exposição é citado o nome do pintor Van Gogh,” eu disse, notando os olhos de Theo brilharem. “Parece que ele fez um grande sucesso por lá.”
“É meu irmão! O senhor conhece o trabalho dele?”
“Uma ou outra natureza–morta. Ele parece ser fascinado com girassóis, não?”
“Sim. Ele ficou mais de um ano trabalhando em Arles. Pintou muitos girassóis naquela cidade. Estão todos aqui. O senhor gostaria de dar uma olhada?”
“Mas é claro.”
Segui Theo, me controlando para não esfregar as mãos. Porém, me empolguei à toa. Novamente, nada de Girassol Negro. Fiz uma menção sutil a esse quadro, ao que Theo respondeu que não, que seu irmão nunca pintara um girassol negro. Vi quase um sorriso zombador esboçar por baixo do seu bigode bem aparado.
“Por que Vincent pintaria algo assim?”
Quinta–feira, 20 de março de 1890
Uma prostituta. Ao que parece o Girassol Negro não passou de um presente para uma prostituta.
Obtive essa pista graças a um golpe de sorte. Fui ontem à exposição dos Independentes, no Pavillon de La Ville. Theo estava lá também com sua esposa, orgulhoso de ver que as obras do irmão começavam a ser elogiadas. Vi Toulouse–Lautrec caminhando com passos curtos e apressados; ele observava os quadros de Vincent e, vez e outra, desenroscava o topo da sua bengala e bebericava alguma coisa que havia ali dentro. Cheguei perto dele e me apresentei. Ele fez uma expressão de contentamento e tirou o chapéu–coco da cabeça para me cumprimentar.
“Vejo que gostou dos quadros do senhor Van Gogh…”
“Ah, sim,” ele respondeu. “Vincent é um grande amigo. Saímos várias vezes quando ele morou aqui. Fico muito contente em ver que suas obras estejam sendo reconhecidas.”
Ele me puxou para o lado e apontou para um retrato na parede, um croqui colorido de um homem de barba vermelha e terno marrom.
“Está vendo? É o retrato que fiz dele no Le Tambourin.”
Levei a mão ao queixo e me aproximei do desenho. Vincent estava sentado de lado, as mãos postas sobre a mesa e um copo à frente. Ele tinha o rosto compenetrado, como se encarasse alguma coisa à direita do espectador.
“Parece hipnotizado,” comentei.
“´Apaixonado` seria o termo certo, mon cher. Fiz esse esboço no momento em que o peguei encarando uma senhora. Ele estava apaixonado por ela. Chegou até a pintar um quadro pra ela.”
“Um retrato, eu imagino…”
“Não,” Lautrec respondeu, bebericando de novo da sua bengalinha. “Um girassol.”
Minha expressão deve ter sido poderosa, pois Lautrec congelou assim que pus a mão em seu ombro. “Um girassol?”
“Ei, está me apertando,” ele disse, movendo o ombro.
“Desculpe.”
“Tudo bem… sim, um girassol.”
“Sabe o nome da garota para quem ele pintou esse quadro?”
“Ah, isso foi há tanto tempo. Deixe–me ver…” ele disse, batendo a ponta da bengala no assoalho. Ele abriu a mãozinha e esfregou o polegar sobre os dedos. Saquei uma nota de cinco francos e entreguei a ele.
“Mimi… Mimi Favre,” ele disse, guardando a nota no bolso. “É uma loira, branca como um fantasma, seios enormes. Está sempre de batom vermelho.”
“E onde posso encontrá–la?”
“Icarus.”
“E o que é o ´Icarus`?”
“Um hotel, mon cher,” Lautrec disse. “Maison d´abattage.”
Eu assenti. “Obrigado, senhor Lautrec,” falei dando as costas.
“Ei, um trocado para o gim, que acha?”
Entreguei outra nota de cinco francos e saí da Exposição, tomando o primeiro coche que apareceu.
A cabeça do condutor apareceu na janela. “Pra onde?”
“Hotel Icarus.”
Ele abriu um sorrisinho e sumiu, o estalo do chicote vindo em seguida.
O coche levou quinze minutos até o Hotel Icarus. Na porta, um segurança barrou a minha entrada. Tentei convencê–lo, alegando que tinha assuntos para tratar com a senhorita Mimi Favre. Ele me olhou de cima, parecendo se divertir comigo.
“Estamo fechado,” ele disse.
“Mas eu disse que é urgente.”
Ele cutucou minha testa com um dedo grande e gordo. “E eu dizer estamo fechado. Vai esperar até de noite.”
Eu não tinha tempo praquilo, nem força para encarar um Boris daquele tamanho. Fiz ele conversar com meu Mace por quatro segundos e entrei, deixando o grandão ´coçando` o olho.
O interior do hotel fazia jus à expressão maison d´abattage; havia tanto vermelho que parecia se estar mesmo num açougue. Todas as almofadas, espreguiçadeiras e sofás eram forrados com um veludo brilhante e cor de sangue. As moças ali usavam vestidos da mesma cor e, quando se sentavam nos sofás, pareciam se camuflar. Percebi que elas não se espantaram ao me ver. Ao contrário, me encararam com interesse e apatia ao mesmo tempo. Mais tarde fui descobrir que o hotel abria àquele horário somente para os mais abastados. Elas devem ter pensado que eu era algum político ou empresário.
Próxima a uma arcada de ébano preto, sentada em uma das poltronas, vi uma garota que se encaixava no perfil descrito por Lautrec. Era mais bonita do que imaginei. Um pouco mais velha que as outras e pálida como uma mulher pintada por Bouguereau, ela tinha os cabelos loiros amarrados em um coque, os seios apertados num corset e usava um batom que parecia feito à base de sangue sacrificial.
Sentei ao lado dela, adentrando na aura de absinto e perfume que pairava ao seu redor. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela pediu fogo. Acendi seu cigarro. Ela lambeu os lábios e deu uma cuspidinha invisível.
“Não devia estar aqui a essa hora,” ela disse, analisando meu rosto como se tivesse raio–X nos olhos. “Como conseguiu entrar?”
“O segurança e eu somos amigos.”
“Amigo do Dimitri?” ela ergueu a sobrancelha e soprou fumaça. “Essa é boa.”
Olhei ao redor. Um velho gordo tinha uma menina em seu colo. Não devia ter mais de quinze anos e ria com um copo de absinto na mão, enquanto o velho lhe sugava o pescoço.
“Tem dinheiro pelo menos?” ela perguntou e eu assenti levemente.
Mimi apagou o cigarro e senti a mão dela roçar a minha.
Ela seguiu até o outro lado do saguão, passando por trás do bar e subindo um lance de escadas. Dos degraus, tinha–se uma vista do zoológico de ricos bêbados resfolegando sobre garotas com meias sete oitavos e bonnets. Era fascinante. Acompanhei Mimi até um corredor iluminado por lâmpadas a gás e com portas do lado esquerdo. Mimi abriu uma delas e entramos, a música do piano ficando para trás.
O quarto tinha uma cama larga com travesseiros de fronhas roxas e um pequeno criado–mudo com uma lâmpada de cabeceira. Havia o quadro de uma igreja pendurado na parede e um lustre de bronze com apenas uma lâmpada acesa. A janela dava para a Porte de Saint–Denis e era possível escutar os sons vindos da rua.
Virei–me e Mimi começava a desabotoar o corset.
“Não,” eu disse, colocando as mãos sobre as dela.
Ela me encarou sem entender.
“Vim aqui porque preciso lhe perguntar uma coisa. É algo importante.”
“O que é?”
“Você conheceu um homem chamado Vincent Van Gogh? Um pintor holandês?”
Mimi se sentou na cama e cruzou as pernas. “Um homem ruivo e de barba desgrenhada?” ela falou após um tempo. “Sim. Eu me lembro dele.”
“Me contaram que ele pintou um quadro para você. Um girassol.”
“Quem lhe contou isso?”
“Um sujeito que bebe gim da bengala.”
Ela soprou ar da boca, naquele gesto de desdém típico dos parisienses. “Aquele anãozinho linguarudo… sim. Ele pintou um quadro para mim. Por que pergunta?”
“Porque eu estou disposto a comprá–lo.”
Ela pareceu se interessar. “Pagaria quanto?”
“Depende. Quanto quer por ele?”
Ela girou os olhos, encarando o teto por um tempo. “Quinhentos francos?”
Quinhentos francos. Era como comprar uma ilha por mil libras. Mantive o sangue frio e disse sem alterar a voz: “Um pouco caro, mas tudo bem. Pago os quinhentos.”
Ela então riu como se estivesse diante da própria Cha–U–Kao.
“Qual problema?” perguntei.
“Não se preocupe. Não estou rindo de você,” ela disse, quase enxugando uma lágrima. “É outra coisa.”
Cruzei os braços e fiquei a encará–la.
“A vida é mesmo engraçada…” ela disse. “E quinhentos francos seriam muito bem–vindos agora.”
“Você não tem mais o quadro…”
Mimi pegou outro cigarro e o colocou nos lábios. Eu o acendi.
“O que aconteceu com ele?” insisti.
“Eu o devolvi,” ela disse.
“Pra Van Gogh?”
“Sim.”
“Por quê?”
“Era um quadro horrível. Não valia a tinta gasta nele. Além do mais, eu preciso de dinheiro, não quadros. Não sei quanto a você, mas eu não compro cigarros com os quadros que me dão de presente.”
“Merda,” resmunguei. “Então o quadro estava mesmo o tempo todo com ele.”
Ela deu de ombros. “Por que quer tanto aquele quadro?”
“Porque meu chefe quer ele,” respondi.
Ótimo. O quadro não passava de uma paga por favores sexuais. Cheguei a pensar em voltar ao dia em que Vincent dera ele de presente a Mimi, quando alguém abriu a porta do quarto num chute. O segurança olhou para mim com olhos vermelhos de Mace e raiva.
Pulei a janela e corri até atravessar a Porte de Saint–Denis. Escutei xingamentos em russo, mas não olhei para trás.
Auvers–sur–Oise, Segunda–feira, 28 de julho de 1890
Cheguei em Auvers–sur–Oise no final da tarde de ontem, por volta das 17h40. Até onde eu sabia, Vincent havia se mudado para essa cidade logo após ter recebido alta do sanatório em Saint–Rèmy. Ele estava hospedado no Albergue Ravoux, uma hospedaria frequentada por operários na Place de la Mairie. Foi para lá que me dirigi.
Havia um letreiro em que se lia Commerce de Vins Restaurant eduas mesas do lado de fora. Homens, trabalhadores locais provavelmente, debruçavam–se sobre copos de vinho, enquanto a noite espichava aos poucos no céu. Suas cabeças acompanharam minha entrada no albergue como ímãs. Incrível como os franceses do sul farejam estrangeiros.
Do lado de dentro do albergue, a menina de cabelos castanhos atrás do balcão usava um vestido azul que lhe vinha até o pescoço, os olhos grandes e curiosos vendo o homem que acabara de entrar na hospedaria. Perguntei sobre o senhor Van Gogh, ao que ela respondeu que sim, que ele estava hospedado ali, mas não se encontrava no momento. Disse a ela, então, que eu era um amigo dele, que iria esperá–lo do lado de fora e que ela levasse um copo de vinho.
Acomodei–me em um dos bancos, deixando a bolsa pesada no chão. A menina trouxe o vinho e, antes que eu o levasse aos lábios, os homens ergueram seus copos para mim. Retribuí a gentileza, bebi e olhei para frente. A estrada de terra escurecia e, às margens dela, um campo de trigo continuava amarelo como se fosse plena manhã.
Sabia que ele iria se suicidar em breve e durante toda viagem tentei me convencer de que não deveria intervir. Tinha apenas que descobrir onde estava o maldito quadro e levá–lo embora comigo; mas acho que fiquei sensível demais depois do segundo copo. Paguei a menina da hospedaria e fui atrás de Vincent.
Encontrei–o sozinho num campo de trigo. Ele segurava um revólver entre os dedos e apontou contra o próprio peito. Gritei seu nome, mas foi tarde demais. O tiro ecoou como um estampido seco e fez corvos voarem assustados.
Corri até ele, sentindo a respiração pesar. Com o rosto afundado na terra, Vincent arranhava a poeira com os dedos, tentando se reerguer. Virei–o de frente e ele me reconheceu.
“Miguel… mon cher… que alegria…”
Havia uma mancha em sua barriga, um ferimento salpicado por grama e grãos de trigo.
“Não diga nada, meu amigo.”
Levei ele até a hospedaria. Os homens nas mesas vieram ajudar, e o levamos até seu quarto. Coloquei–o na cama e falei para a menina do vestido azul que procurasse um médico. Ainda tentei perguntar por que dera um tiro em si mesmo, mas ele foi relutante e disse que não queria falar sobre esse assunto. Pediu que eu lhe contasse sobre mim, e eu falei sobre minha ida a Paris após a cadeia, a visita a seu irmão Theo e à senhorita Mimi Favre.
Escutar aquele nome pareceu dar vida à Vincent, pois ele estreitou os olhos e me puxou pelo colarinho.
“No ateliê… tem um quadro. Nunca o acertei. Nunca. Por favor, Miguel, não deixe ninguém ver aquilo. Livre–se dele.”
Ele me fez prometer que o destruiria. Eu prometi.
Passei o resto da noite ao lado dele. Theo chegou hoje de manhã. Está confiante de que o irmão irá sobreviver.
Quinta–feira, 31 de julho de 1890
Hoje fez um calor terrível durante o dia. Mesmo assim, várias pessoas participaram do velório de Vincent. Theo enfeitou o seu ateliê com girassóis e algumas das telas que ele pintara em Auvers–sur–Oise. Foi uma cerimônia simples, sem padre. Suicidas não têm direito a padres.
Enquanto todos seguiram o cortejo até o cemitério, aproveitei para ficar no ateliê e atender ao último pedido de Vincent. Procurei em cada canto até encontrar a tela de que ele me falara. Ela estava escondida dentro de um armário, embrulhada em uma saca usada para guardar farinha. Tirei ela dali e a coloquei em cima de uma mesa.
Era ainda mais impressionante do que Elias imaginara.
Ao fundo, vê–se uma parede verde, onde uma lâmpada brilha solitária. Sobre a mesa de madeira vermelha, está depositado um jarro, pintado no mesmo azul escuro que ele usara para o Céu Estrelado sobre o Ródano. O girassol está depositado nele, suas pétalas e sua cabeça escuras como vantablack, um preto infernal, hipnótico e informe. Não há assinatura, nem mesmo data. Ao que parece, Vincent estava com esse quadro havia pelo menos quatro anos, guardando–o desde que o recebera de volta da prostituta Mimi Favre. Desde então, ele o vinha retocando, adicionando novas pinceladas, remexendo na tela como quem cutuca uma velha ferida.
Esse é o quadro que o senhor Golbery tanto quer.
O quadro que Vincent pediu para ser destruído.
Não posso entregá–lo. Mas não sei se serei capaz de destrui–lo também.
Sexta–feira, 8 de agosto de 1890
Golbery sabe que tenho o quadro e mandou um de seus homens atrás de mim. Não parecia ser um viajante como eu. Só um mercenário de Paris que Golbery provavelmente contatara por telégrafo (´internet mecânica`, como ele diz) e que já devia estar me vigiando há algum tempo. De uma coisa eu sei: ele não irá voltar mais para Paris.
E agora eu não posso mais ficar aqui.
Esse é um trecho bastante confuso do diário, mas, consultando o banco de dados da polícia de Auvers–sur–Oise e alguns jornais de época, consegui descobrir algumas coisas. Ao que parece, no dia 08/08/1890 um parisiense fora encontrado morto no hotel Cavalier Bleu. O corpo fora encontrado por uma camareira, algumas horas após o assassinato. Um dos jornais relata que um estrangeiro que estava hospedado ali matou o parisiense usando uma chave de fenda, aplicando golpes no pescoço e na barriga. O relatório da polícia termina com a conclusão de que se tratou de uma tentativa de roubo, e que a vítima (o estrangeiro) agiu em legítima defesa. Ele não foi encontrado nem pela polícia nem pela imprensa local.
Papeete, Domingo, 16 de março de 2053
Verão em Papeete. Da janela desse quarto na favela, a única coisa que se vê são os outros prédios e a vida íntima dos seus hóspedes. A parte idílica dessa ilha, aquela exaltada por Gauguin, fica a quilômetros de onde estou, separada por muros do resto da cidade, um ambiente exclusivo para turistas alemães e chineses.
Talvez eu tenha sido dramático demais. Por que matei aquele homem em Auvers? Poderia ter simplesmente entregue o quadro.
Mas não posso. Não posso trair a confiança de Vincent, mas também não encontro forças para destruir o quadro. Agora, aqui estou eu, fugindo de ano em ano, carregando esse quadro como quem carrega uma cruz.
Esse foi o último relato anotado por Miguel Agagê antes de sua morte. Seu corpo foi encontrado com marcas de balas dos mais variados calibres, logo a hipótese de suicídio está completamente descartada.
Fizemos algumas entrevistas com moradores do prédio, mas nada muito esclarecedor. No geral, todos definiram Miguel Agagê como um homem circunspecto, porém educado e cordial com todos. O relato mais completo que temos é o de um grupo de crianças que estava brincando do lado de fora do prédio na noite do dia 07/04/2053. Segundo elas, por volta das 20h14, uma forte luz veio da janela do apartamento de Agagê, seguida por vozes de homens a discutir. Cerca de cinco minutos depois, às 20h19, o som de tiros. Em seguida, a mesma luz forte.
O mais espantoso é que ninguém no prédio viu nenhum homem armado entrar no apartamento de Agagê. O que não seria difícil de notar, visto ele ter sido morto por tiros de armamento pesado (galil, bullpup e jericho). A porta estava trancada quando a polícia chegou e não havia sinais de arrombamento. O relatório da equipe de investigação enviada aponta que é possível estabelecer perfeitamente a posição de cada um dos assassinos através do ângulo com que os tiros acertaram o corpo de Agagê. Excluindo isso, é como se ninguém houvesse entrado naquele apartamento. Nada foi encontrado. Nem um fio de cabelo, nem um fiapo de roupa, nada. É como se ele tivesse sido morto por fantasmas.
Os assassinos de Miguel Agagê foram muito provavelmente contratados pelo homem de nome “Golbery”, que é citado algumas vezes ao longo do diário. Esse mesmo senhor Golbery parece ter sido chefe de Agagê. O assassinato foi uma vingança contra um funcionário insubordinado.
Quanto ao tão falado quadro, o Girassol Negro, nada foi encontrado.