O Coelho do Pré-Cambriano
por Jeferson J. Arenzon
Grãos de poeira, impelidos pelo ar, se depositavam à distância, camada após camada, numa versão em escala reduzida dos lentos processos que, durante milhões de anos, formaram o terreno que agora era meticulosamente trabalhado pela equipe. A paleontóloga chefe vinha correndo, tinha recebido um chamado urgente do estudante que escavava na parte oriental do afloramento. Provavelmente haviam achado outro velociraptor, pensou, bebendo um gole de água sob o sol escaldante. Essas saídas de campo se tornavam mais e mais difíceis de suportar, muito mais fácil seria estudar as dezenas de fósseis engessados que aguardavam pacientemente nas prateleiras do seu laboratório. Mas o risco da descoberta era inebriante e essas pequenas improbabilidades a faziam andar a passos rápidos enquanto traçava possíveis cenários do que poderia encontrar. Percebeu o olhar confuso do estudante ao chegar e se abaixou para observar. De fato, era um velociraptor, o mesmo que limpavam já há alguns dias e não deveria haver surpresas. Mas ao olhar de perto, notou que algo estava errado. Muito errado. Aquele crânio desgastado, claramente hominídeo, não deveria estar junto aos ossos do dinossauro.
***
Coniglio trabalhava na empresa há quatro décadas e aquela rotina se repetia toda vez que um novo grupo de turistas se preparava para o passeio. Os protocolos eram rígidos, não somente para garantir a segurança deles, mas também para evitar efeitos indesejáveis na realidade.
“Assim”, disse ele, “`é o Princípio de Lorenz–Bradbury que, aplicado ao fluxo temporal, faz com que pequenos efeitos acabem se amplificando e provocando enormes modificações”. Todos estudavam o efeito borboleta na escola, sistemas caóticos possuíam uma forte dependência das condições iniciais e estas nunca eram conhecidas por completo. Essa imprecisão sobre o ponto de partida de um sistema, com o passar do tempo, era amplificada e o resultado, imprevisível. “Portanto”, continuou ele, “sigam exatamente as instruções da equipe, não façam nada que não tenha sido explicitamente permitido e, principalmente, não toquem em nada nem saiam da trilha protegida.” Sua função na empresa era operar a máquina do tempo e assustar bastante os viajantes para garantir que as regras fossem seguidas. A responsabilidade de manter intacto o tecido da realidade, diziam, era dele. Percebia ali a mesma estratégia que ele usava com os turistas, o que, pelo tamanho do risco, era justificado. Mas o Princípio de Lorenz–Bradbury, baseado em extrapolações e lendas urbanas do século XX, por razões óbvias nunca havia sido testado. Afinal, ninguém sabia nem a escala nem o local onde as transformações se manifestariam, pois o sistema caótico, no caso, era todo o planeta. Um experimento controlado estava fora de questão, embora algumas teorias conspiratórias defendessem que os inusitados acontecimentos do famoso ano de 2016 eram evidência de que um tal teste, clandestino, teria sido feito.
Durante todos aqueles anos, Coniglio sofreu com a pressão de fazer com que os turistas entendessem e seguissem as regras. Entendia que qualquer pequeno problema seria o fim da empresa. Grandes problemas, por outro lado, poderiam alterar de tal forma a realidade que qualquer coisa poderia ser diferente. Os alemães poderiam ter ganho a guerra. O império romano poderia nunca ter caído. A humanidade poderia nunca ter existido. Coniglio estava velho, ainda precisaria fazer aquele serviço por alguns anos, mas estava cansado daquilo tudo. Como o tempo gasto durante a viagem era irrelevante, a volta ocorria alguns instantes após a partida, nos últimos tempos ele se permitia alguns passeios. A regularidade da experiência, a capacidade de conseguir prever corretamente a sucessão de eventos, o relaxava.
Quando não pensava na sua mulher há pouco falecida, seus pensamentos se focavam sobre a realidade daquelas viagens. Aquilo era real ou uma ilusão coletiva provocada pela máquina? Seria o mundo realmente antigo como diziam alguns, e não jovem como pregavam os Textos? A ideia da ilusão o atraía, mantinha a consistência dos Textos, e seria uma grande satisfação mostrar para todos aqueles cientistas arrogantes da empresa o quanto estavam errados. Por outro lado, a experiência era muito vívida e detalhada. Num dos passeios, onde havia se aventurado para os limites da trilha protegida, avistou ao longe, no pântano, a luta inevitável entre um velociraptor e outro dinossauro que não soube identificar, maior um pouco e mais colorido. Tendo sucumbido, o corpo do velociraptor ficou semi submerso na lama, o que fez com que o outro dinossauro desistisse da carcaça.
Ficou olhando o corpo inerte e as penas ensanguentadas do velociraptor, convencido, por ora, de que tudo era real. Muitas vezes configurou a máquina para voltar naquele mesmo momento e rever a cena.
A repetição, regular como um relógio, dava cada vez mais um ar cinematográfico e irreal para aquilo, sua convicção sobre a realidade pendulando de uma explicação para outra.
Aquele dia era como os tantos que já passara. Depois de se desembaraçar dos turistas, exausto, marcou o destino na máquina e foi observar novamente o destino do velociraptor. Levava sua pistola porque fazia parte do protocolo, sabia exatamente o que veria nas próximas horas e não havia risco algum. A trilha suspensa seguia tortuosa, passando por uma série de mirantes onde aconteciam os pontos altos do passeio, em geral grandes dinossauros herbívoros em busca de galhos tenros e baixos. O velociraptor e seu algoz anônimo também faziam parte, mas a violência da cena a tornava um item opcional, raramente solicitado. As equipes iniciais mapearam cuidadosamente tudo que poderia ser de interesse naquela pequena bolha do espaço–tempo e, ao construir a trilha, nesses pontos foram colocados locais de observação, camuflados e afastados o suficiente para não serem detectados. Coniglio se dirigiu para o ponto de onde se avistava a luta. Ali, o terreno sob a trilha era um lamaçal que dificultava a locomoção dos animais, por isso o ponto de observação era um pouco mais próximo da cena do que os outros. O calor forte era desagradável, mas já estava habituado. O primeiro sinal de que algo estava errado, percebeu Coniglio, foi sua visão, a parte periférica parecia balançar e ele teve que se esforçar para manter o centro focado. Sentiu suas pernas vacilarem, a luminosidade diminuindo, o pensamento se apagando enquanto seu corpo girava e tombava. A última visão foi o azul do céu, depois escuridão e silêncio.
Coniglio não soube dizer quanto tempo ficou desacordado. Não muito, pensou, afinal ainda não havia sinal do velociraptor. O que havia acontecido? Provavelmente uma queda de pressão e um desmaio, algo que nunca havia ocorrido antes. Em seguida percebeu que havia caído fora da trilha e estava coberto de lama e insetos. Esboçou um sorriso após verificar que não havia nenhuma borboleta amassada, como na lenda. Mas a expressão desapareceu rapidamente de seu rosto ao perceber que vários outros pequenos insetos estavam colados à sua roupa. Sabia o que aquilo significava, ou melhor, não sabia. As consequências de uma perturbação minúscula em um sistema caótico eram imprevisíveis. Seu pensamento foi desviado pela visão do velociraptor e, logo atrás, seu algoz. Como se fizessem uma luta coreografada, os dois realizaram todos os passos e movimentos previstos com perfeita regularidade. Embora rápido e astuto, o velociraptor não era páreo para o outro que, num movimento repentino alcançou e quebrou seu pescoço. O dinossauro desconhecido ainda tentou comer algo da carne, mas o excesso de lama o impediu, se afastando em seguida e abandonando o corpo inerte daquele bípede plumado semienterrado no pântano. Isso, para Coniglio, foi um sinal de alívio. A morte daqueles insetos pareceu não perturbar em nada esses acontecimentos, o futuro poderia não ter sido afetado. Novamente sua expressão foi coberta por uma camada sombria. Era claro que um pequeno inseto não teria alterado o desfecho daquela luta, pouco tempo havia se passado, e a manifestação do caos exige uma longa escala temporal para produzir efeitos macroscópicos e visíveis. Não, certamente haveria uma consequência no futuro. Mas qual? Seria grande ou pequena? Se fosse pequena, alguém saberia que as coisas mudaram, ou só ele? Se descobrissem, ele seria responsabilizado. Mas se fossem grandes? Ele poderia nunca ter existido, ou mesmo a máquina do tempo. Poderia ele voltar? Valeria a pena correr tal risco? Não saber o que iria encontrar era um pensamento desalentador. E se absolutamente nada tivesse ocorrido? Seguiria com sua vida solitária, o que também não trazia nenhum conforto. Pensou também nas intermináveis discussões com seus colegas, sobre evolução. Tinha suas dúvidas sobre a realidade do processo, afinal, os Textos davam outra explicação. Este incidente poderia resolver a questão, o mundo poderia ter mudado mas os seres vivos, se foram criados, continuariam os mesmos. Ou tudo poderia ter mudado na sequência contingencial de eventos aleatórios que deram origem aos seres que conhecemos. Essas questões o confundiam, o angustiavam e não percebia uma solução clara ou simples.
Tomou uma decisão, mas havia uma última coisa que precisava fazer. O futuro agora era algo nebuloso e vazio, mas a questão sobre a evolução marchava com ele, e pensava no que seria necessário para desacreditá–la. Ao mesmo tempo se movia lenta e cuidadosamente na direção do palco natural onde por tantas vezes presenciou aquela luta. Coniglio sorriu, imaginando se um dia descobririam seu corpo. Sentou e passou um braço em torno do pescoço do velociraptor enquanto que, com o outro, alcançava sua pistola. Fechou os olhos e, pela última vez, respirou o ar do Cretáceo.
Jeferson Arenzon é professor titular do Departamento de Física da UFRGS e também um dos produtores/apresentadores do podcast Fronteiras da Ciência”. Este conto é o primeiro da sua segunda fase. Na primeira, recém alfabetizado, escreveu as histórias de Gansinho Ganso e do hipopótamo gigante que, levado de uma ilha remota para Nova Iorque, escapa e escala o Empire State Building onde é abatido por caças. Não tendo agradado a crítica local, entrou em um período de bloqueio que durou quarenta anos.