Homenagem ao Roberto Cezar Nascimento
Uma Vida Fantástica
por Gerson Avillez
Difícil exprimir em palavras a importância de Roberto Cesar do Nascimento. Seu legado transcende a CLFC e ganha importância histórica na ficção científica no Brasil. A forma mais justa de corrigir a ausência da menção de seu falecimento é prestar um justo tributo à figura central, não somente da fundação da CLFC, mas da segunda onda do gênero no Brasil. O CLFC somente se torna historicamente importante graças a ele, ainda que essa importância seja muitas vezes negligenciada atualmente.
Carioca, Nascimento se mudou para São Paulo ainda na juventude e lá passou a maior parte de sua vida. Formou–se em administração de Empresas vindo a trabalhar na então estatal Prodam, empresa de informática do município de São Paulo. Mas sua maior paixão era mesmo a ficção científica e por ela ele se dedicou toda a vida. Inicialmente de forma amadora, mas com esmero profissional. Prova de sua paixão era uma vasta biblioteca o qual possuía e do qual o acervo era predominantemente do gênero.
Casou–se com Lucy com que teve uma filha chamada Mariana, e apesar de todo seu afinco e dedicação ao clube afastou–se por estar manifestando Alzheimer, optando pela reclusão.
O fato é que a história de C. R. Nascimento mescla–se com a do CLFC o qual decorro de narrar brevemente. Escritor, Nascimento era versado em tudo que diz respeito à ficção científica de seu tempo, escrevendo alguns dos melhores artigos do gênero no Brasil assim como editado a revista “Somnium” do CLFC. Fora ele quem, aliás, lançou a ideia de uma associação para leitores do gênero ficção científica quando publicou seu livro Quem é Quem na Ficção Científica: Volume 1, A Coleção Argonauta (João Scortecci Editor, 1985) pela editora lusitana Livros do Brasil. O livro, que compilava uma série de informações sobre a coleção Argonauta, tinha em seu fim uma ficha de inscrição para possíveis membros interessados em participar de uma associação de leitores voltada ao gênero.
Assim nascia na cidade de São Paulo o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) no dia 15 de dezembro de 1985 ao lado dos também fundadores Fritz Peter Bendinelli, Ivan Carlos Regina e Walter da Silva Machado que juntos escreveram o estatuto e assinaram a Ata registrada em cartório. Logo em seguida fora publicado um “Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica” sob a tutela de Nascimento e que era a versão embrionária da revista “Somnium” que somente recebeu esse nome em julho de 1986 após a sétima edição numa democrática escolha do nome por voto dos membros.
Graças a “Somnium” formou–se por sua vez os elementos que constituíram a Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, basicamente lançando talentos hoje consagrados no gênero no Brasil.
Nascimento sobretudo escrever alguns importantes artigos ainda hoje lembrados pelos amantes de ficção científica, como um publicado em 1992 (período de Mar/Junho) na edição 56 da revista “Somnium”. O artigo que dissertava sobre a Data Estelar de Star Trek ainda hoje é lembrado estando no site Frota Estelar de São Paulo.
O atual presidente do CLFC, Clinton Davisson Fialho, afirma que nunca conheceu Roberto pessoalmente, mas que assumiu a presidência do Clube por respeito a tudo que ele e outros presidentes haviam feito anteriormente. “O Clube teve uma importância fundamental na história da ficção cientifica brasileira e estava para acabar. A ideia era honra Roberto e todos os outros que vieram antes e tanto lutaram por um ideal. Hoje o Clube não oferece os mesmos benefícios que antes porque a internet supre aquelas carências de informação que existia, mas o CLFC repensou seu papel e continua atuando em outras áreas. Assim, deixamos o legado de Roberto vivo”.
Roberto Cezar Nascimento
por Gerson Lodi-Ribeiro
Roberto Nascimento foi um bom amigo. Ao longo da década me encontrei com ele sempre que ia a São Paulo, participar das reuniões mensais do CLFC, que àquela época se davam mensalmente numa manhã de sábado, no interior de uma livraria paulistana. Mais tarde, vários dos participantes seguiam para almoçar no Ponto Chic, restaurante onde, segundo a lenda, haviam inventado o sanduíche Bauru.
Naquela época pré–internética em que ele era presidente do CLFC e editor do Somnium, eu me correspondia bastante com ele. Desde o início, tanto como presidente quanto, sobretudo, como editor, Nascimento passou–me a imagem de um perfeccionista: não admitia que os colaboradores do fanzine não se esforçassem ao máximo para entregar o melhor trabalho possível e não aceitava como desculpa o argumento surrado de que todos éramos amadores e que escrevíamos e colaborávamos nas horas vagas.
— Ninguém os obriga a participar, mas, se vocês o fazem, façam direito.
Por outro lado, quando algo dava errado e eu reclamava da qualidade de alguma matéria ou dos atrasos do fanzine, ele advertia, com ironia cirúrgica:
— Sempre tentamos fazer o melhor possível, mas o nosso lado humano atrapalha.
Ao longo dos anos encontrei com o Nascimento umas poucas vezes no Rio de Janeiro. Uma delas foi durante a visita do escritor Frederik Pohl e do editor e crítico Charles N. Brown à cidade. Outra foi por ocasião da comemoração do terceiro aniversário do CLFC em 1988, evento que fui louco o bastante para organizar na casa dos meus pais, na Tijuca.
Uma vez também o encontrei em Sumaré, interior de São Paulo, durante a primeira InteriorCon. Nascimento mostrou–se a um só tempo surpreso e entusiasmado pelo fato de terem comparecido ao evento mais cariocas do que paulistanos. Uma efeméride, se pensarmos bem. Afinal de contas, Sumaré é bem mais perto da capital paulista do que do Rio de Janeiro. No entanto, ele se impacientou com o atraso da caravana de automóveis de sócios cariocas que havia partido pela manhã do Rio e, à noitinha, ainda não havia, em sua maioria, chegado a Sumaré.
— Gerson, você por acaso sabe o que ocorreu com a caravana carioca? — Ele me perguntou à primeira oportunidade.
— Olha, Nascimento, ouvi falar que eles tiveram problemas na estrada. Parece que um automóvel, inclusive, estourou os pistões. Mas, você sabe como é, né? Caravana de carioca…
— Sei como é. Uns disparam na frente e correm como loucos na tentativa de deixar os outros para trás. — Ele vaticinou, acertadamente, aliás.
Preferi não retrucar. Afinal, Nascimento também era carioca e, como tal, devia saber do que estava falando.
***
Nascimento teve a ideia luminosa de convocar a criação de um clube de leitores de literatura fantástica a partir de uma cartela–resposta impressa na última página de um livro que ele publicou sobre a Coleção Argonauta.
Todos achávamos que a Argonauta duraria para sempre, mas um belo dia ela terminou. Foi descontinuada. Muitos de nós julgávamos que o Nascimento ainda viveria muitos e muitos anos. Infelizmente, tal não se deu.
Uma das maiores alegrias que vivi como presidente do CLFC foi poder entregar em 2000 o troféu do recém–criado prêmio Argos na categoria não–ficção para o Nascimento, pela publicação de um novo livro sobre a Coleção Argonauta. Senti que um ciclo se fechava no dia daquela cerimônia no auditório do Clube dos Engenheiros Ferroviários de São Paulo. Bateu uma sensação de dever cumprido.
Roberto Nascimento foi um bom amigo. Fará falta. Deixará saudades.
Roberto Nascimento
por Ivan Carlos Regina
Quando meu pai morreu, deixou para mim um baú de vime repleto de livros de policial, terror e alguns de ficção científica. Destes gêneros, eu gostava somente do último e li–os com o maior prazer. Pertenciam à coleção Argonauta, editada pela Livros do Brasil, em Portugal, desde 1953, por coincidência o ano em que nasci.
Nesta procura e considerando–se que na época ainda não havia Internet, telefonava para todos os sebos (nome que se dá a livrarias que comercializam livros usados, de segunda mão) e percorria aqueles estabelecidos no centro da cidade, em busca dos exemplares desta coleção, para completar a minha.
Lá pelos meados do ano de 1985, nesta procura deparei–me com um interessante livrinho, publicado pelo autor, que resenhava todos os volumes da Coleção Argonauta, contando sua gênese e enumerando autores, nomes do original e tradutores, numa inspirada radiografia da coleção. Seu autor me era totalmente desconhecido, Roberto César do Nascimento. O livro trazia ainda um apelo para a criação de uma entidade que pudesse reunir todos os fãs do gênero de ficção científica, naquela época absolutamente dispersos pelo Brasil afora.
A única saída foi ligar para todos os homônimos existentes na Lista Telefônica do município de São Paulo, perguntando se os mesmos gostavam de Ficção Científica. Depois de muitos palavrões e desentendimentos, contatei o verdadeiro Roberto Nascimento, que me convidou para um almoço, onde pude conhece–lo melhor e ajuda–lo no plano para criarmos uma associação dos apaixonados por este gênero de literatura. Este primeiro encontro foi junto ao Parque do Ibirapuera pois Roberto trabalhava na Prodam, órgão de processamento de dados da cidade de São Paulo.
Feitos os preparativos, no dia 04 de dezembro de 1985 comparecemos eu, o Fritz Bendinelli e o Walter Machado no salão de festas do edifício onde Roberto morava, localizado no Itaim Bibi, onde redigimos o rascunho do estatuto do Clube de Leitores de Ficção Científica, cujo manuscrito ainda guardo como relíquia. Não podíamos imaginar que aquela entidade fundada por somente quatro indivíduos que conversavam amenidades sobre o gênero que adoravam iria se constituir na mais longeva e produtiva associação de fãs de ficção científica no Brasil.
E este sucesso se deve primordialmente às qualidades de caráter que Roberto Nascimento possuía. Era homem extremamente metódico, organizado, pontual, com raro poder de concisão e trabalho. Profundo conhecedor de ficção científica, mas também de astronomia e engenharia espacial.
Os primeiros anos do C.L.F.C. foram de vento em popa, pois fomos o primeiro dos Clubes temáticos a se organizar de forma jurídica e legal. Nossas reuniões mensais tinham expressiva cobertura da imprensa, com extensas reportagens no jornal “O Estado de São Paulo” e capa do caderno de diversões do Jornal da Tarde, do mesmo grupo empresarial mas lido principalmente pelo público mais jovem, e onde, à cada matéria veiculada, aumentávamos nosso número de associados. Muitos repórteres estranhavam a seriedade de nossas reuniões, pois esperavam fãs fantasiados e performances teatrais, mas basicamente discutíamos os grandes clássicos e os autores mais importantes da época.
Nesta época resolvemos fundar o “Somnium”, nome eleito pelos sócios, que referencia livro de mesmo nome de Johannes Kepler , publicado em 1634. Do Roberto foi a sugestão do slogan do fanzine, “Ad astra per aspera”, que significa atingir as estrelas ainda que por ásperos caminhos.
Foi ali que iniciei, como tantos outros, a publicação de contos de ficção científica. A importância do C.L.F.C. pode ser medida analisando–se quantos autores de F.C. tiveram sua gênese nesta entidade, arriscaria a dizer que quase a totalidade dos mais importantes autores tiveram ali seu batismo para esta literatura.
Realizamos ainda duas importantes mostras de Ficção Científica, a primeira no SESC Pompéia e a segunda no SESC da Rua Carmo. A organização destes eventos mostrou–me mais um pouco do caráter do Roberto Nascimento. Enquanto eu arrancava meus próprios cabelos, e gritava com todos, no afã de conciliar as exigências dos patrocinadores do SESC ao capricho dos proprietários das pinturas, naves, desenhos, livros e outras coisas que seriam expostas, Roberto, sempre com a voz baixa e ponderada, punha pano quente nas querelas que pipocavam a todo instante. Era um trabalhador incansável, destes que lavoram na sombra, sem jamais buscar o brilho dos holofotes ou da autopromoção.
Na mostra do SESC Carmo, após Roberto trabalhar duro conseguindo material para a exposição, foi André Carneiro que apareceu nas manchetes de jornais, beijando os manequins futuristas que enfeitavam a parte frontal da sala do evento. Não ouvi dele nenhuma reclamação, pois acima de sua visibilidade pessoal punha sempre a divulgação do gênero. Era um verdadeiro mecenas, pondo muito dinheiro de seu bolso para a consecução de muitas das atividades do C.L.F.C.
Em 1989 a Prefeitura de São Paulo foi ganha pela primeira vez pelo Partido dos Trabalhadores. Pelo fato de ser servidor municipal e ocupar cargo de direção, Roberto Nascimento sofreu perseguições e foi alvo de inúmeras sindicâncias nessa gestão. De índole honestíssima, daqueles que não furtava nem palito de dente sem pedir autorização ao dono do bar, Roberto sentiu–se constrangido e triste. Quando finalmente, após inúmeras diligências, foi considerado pela direção um funcionário exemplar (algo que eu sempre soube), algo nele havia mudado. Ficou ainda mais circunspecto, mais reservado, mas sem jamais abandonar a ficção científica, gênero que amou durante toda a sua vida.
Apesar de sua seriedade, Roberto era possuidor de um humor fino, do tipo inglês. Lembro–me que na fundação de um clube destinado ao culto de Star Trek, aqui em São Paulo, instaurou–se na mesa do evento uma briga generalizada, pois elementos de outra facção queriam tomar posse daquilo que julgavam ser seu de direito, ou seja, constituir uma entidade com aquela finalidade. Eu e Roberto estávamos sentados na plateia, convidados que fôramos por sermos da direção do C. L..F.C. Quando o nível de animosidade passou dos limites, Roberto foi à mesa diretora e declarou, que, em nome da Frota Interestelar Internacional (ou coisa semelhante), e na sua posição de Coronel, assumiria a condução dos trabalhos. Várias pessoas gritaram que não havia esta patente na América do Sul, e que ele estava mentindo. Roberto, impenetrável, tirou sua carteirinha de Coronel e apresentou–a a todos, e depois presidiu aquela sessão inaugural de forma impagável.
Fui Secretário Executivo do C.L.F.C. durante algumas gestões, mas depois, por problemas pessoais (filhos nascendo, trabalho exigindo) fui me afastando da direção. Havia muita pressão da ala jovem do Clube para as coisas andarem mais depressa, o que necessitaria mais investimentos e uma estrutura mais profissional, o que jamais foi atingido pois a entidade sempre foi tocada por mão de obra bem–intencionada, mas sempre amadora.
Outras pessoas foram se juntando ao clube, revezando–se em sua presidência e na tarefa avassaladora de cumprir todas suas obrigações administrativas e publicar o Somnium. Para não cometer injustiças, uma vez que a memória, na fase de vida que estou, é muito mais nublada que límpida, declino de nomear todos estes benfeitores que aos trancos e barrancos sempre levam adiante a bandeira da Ficção Científica.
Depois de diagnosticado com o mal de Parkinson Roberto ainda algum tempo compareceu às nossas tradicionais noitadas de pizza em São Paulo. Nunca ouvi dele nenhuma reclamação pela doença, ou por qualquer ação de outra pessoa em seu convívio cotidiano.
Talvez a realização de grandes coisas passe por esta feliz reunião de traços de caráter que una humildade, desprendimento, organização, capacidade de trabalho, qualidades tão raras de se encontrar em único indivíduo, e que Roberto Nascimento possuía com grande intensidade.
Agradecer não é mais que uma obrigação, mas deixo junto a palavra saudades que destino aos melhores amigos.