Bem Longe de Casa
por Sylvia Spruck Wrigley (País de Gales), tradução de Santiago Santos
A tia–avó Gertrude picava as frutas secas enquanto eu batia a massa. O display do refrigerador atualizou: estávamos a exatos 982.000 quilômetros da Terra. — Olha, mãe, olha — Lorissa gritou. Ela estava esperando todos os números virarem noves.
— Muito legal, meu anjo — tentei parecer entusiasmada.
A tia–avó Gertrude estava dando sermão, como sempre. — Se você quer fazer isso do jeito certo, você precisa bater com a mão, não usando a batedeira elétrica.
Lorissa subiu no banco e tomou a colher de pau de mim. — Você é a melhor ajudante — a tia–avó Gertrude disse a ela. — Muito melhor que sua mãe. Ela não é cuidadosa quando cozinha — Lorissa balançou a cabeça, sua cara gorducha séria enquanto abria caminhos cuidadosos pela massa. Me controlei pra não falar nada.
A gente não acompanhava o calendário da Terra na nave. Mas a tia–avó Gertrude tinha decidido que era uma boa hora para celebrar o Weihnachten¹. Não importava que ninguém tivesse presentes ou que não fizesse sentido desejar paz e misericórdia na Terra. Lorissa decorou o salão com neve feita de bolas de algodão e cantamos as cantigas e comemos o Lebkuchen². Você não dizia não pra tia–avó Gertrude.
Hugh estava sentado na cabine de comunicação, como sempre. — Feliz Natal da nave Sittner735, tem alguém aí?
Quando o tio–avô Herbert nos falou que havia comprado uma nave espacial completamente equipada, todos dissemos que ele era maluco. Gastou a pensão toda, caiu no conto do vigário, ficou senil. Quando a guerra começou, ele deve ter ficado muito tentado a nos deixar todos pra trás por rir dele. Mas isso o deixaria sozinho por toda a eternidade com a tia–avó Gertrude, então ele nos perdoou e se certificou de que todos nós subíssemos a bordo. O problema é que ninguém sabia como controlar o sistema de navegação. Hugh, meu marido, ficou no rádio, na esperança de fazer contato com alguns dos outros que evacuaram, mas, novamente, ninguém sabia que frequências deveríamos usar ou coisas do tipo. Logo, essa era a nossa situação, cinco pessoas navegando no espaço, esperando pra ver até onde essa nave conseguia ir.
A cada 28 ciclos, a tia–avó Gertrude declarava que era Weihnachten e toda aquela desgraça começava de novo. Eu sabia que era a cada 28 ciclos porque ela estava bem sincronizada com a minha menstruação, então assim que minhas cãibras nas costas começavam, era hora de “venha pra cozinha e ajude o seu nenê a bater a massa” como se não tivéssemos acabado de fazer isso.
Essa era a quarta celebração de Natal. Lorissa tinha acabado de me mostrar o display do refrigerador subindo pra 989.500 quilômetros da Terra quando a tia–avó Gertrude desabou. Carreguei ela pro dormitório, percebendo quão magra ela tinha ficado nos poucos meses desde que havíamos partido de casa. O tio–avô Herbert a ignorou, como sempre, sentado na biblioteca estudando sua coleção digital de mapas de sistemas solares. Hugh mandava transmissões pro espaço, procurando sinais de vida. Eu sentava com ela todos os dias. Ela ficou pequena e frágil do dia pra noite, a pele esticada contra os ossos. Eu acariciava sua mão e Lorissa trazia canecas de chá que ela nunca bebia. Sentada lá dia após dia, eu me sentia inútil e brava e com frio.
— Lorissa, vai brincar com o seu pai — esbravejei quando ela me perguntou pela décima quinta vez se havia sobrado algum Lebkuchen.
— Ele me disse pra vir pra cá — ela choramingou. Era a gota d’água. Marchei pra dentro da cabine de rádio onde Hugh estava sentado, agarrado ao microfone como se aquilo pudesse salvá–lo. — Você não pode largar isso aí por dez minutos e cuidar da sua filha? Eu tenho que fazer tudo?
Ele se virou e me deu uma encarada lenta e dura. Mantive a postura. — Estou tentando cuidar da minha tia e Lorissa está virando o lugar de cabeça pra baixo e tudo que você faz é sentar aí matraqueando pro espaço como se os Johnson fossem aparecer do nada e bater na porta. Você não sabe que isso é inútil?
Eu queria que ele gritasse ou se enfurecesse ou fizesse algo, mas ele só me encarou e finalmente disse numa voz baixa: — O que você quer que eu faça?
Sua cara fria me assustou mais do que qualquer outra coisa até então. — Me ajude com a tia–avó Gertrude.
Ele balançou a cabeça. — Como? Ela tá sem remédios, sem tempo.
— Quê? — Meu coração acelerou quando percebi a verdade naquilo. — Quem seria tão estúpido? Certamente eles trouxeram reservas, estocaram suprimentos pra uma vida toda quando trouxeram as caixas de carne enlatada e gengibre em pó.
— É, o médico com certeza ia escrever uma receita pra isso — ele disse, e riu. Encarei–o, desconfortavelmente ciente de que eu mal tinha conversado com ele em meses. Ele estava aqui, dia e noite, falando no rádio. — O que ela faria com todas aquelas pílulas, de qualquer forma? — ele baixou o microfone e se aproximou, mas não estendeu a mão. — Pra onde você acha que a gente tá indo, exatamente?
— Bom, a nave tá programada, certo? Então seguiremos pelo espaço e depois voltaremos quando as cinzas nucleares acabarem.
Hugh me encarou do mesmo jeito que encararia um estranho. Depois só balançou a cabeça e sentou de novo. — Sittner735, alguém na escuta?
Lorissa correu pra dentro da cabine de comunicação. — Já tá chegando o Weihnachten?
Levei ela pra cozinha e peguei a bacia. — Vamos fazer Lebkuchen pra tia–avó Gertrude — eu disse pra ela. — Todo dia, até quando a gente não puder mais.
O display do refrigerador mudou. 997.799 quilômetros. E só agora eu percebia que não havia lugar nenhum pra nossa família ir.
Notas do tradutor:
¹ – Weihnachten – Natal, em alemão
² – Lebkuchen – Iguaria natalina, espécie de biscoito doce consumido sobretudo nos países frios da Europa.